A conversa que tempera nhoques e lasanhas



Marcus Vinicius Batista

Não sou metódico. Pelo contrário, prefiro uma dose de improvisação e aproveito as oportunidades quando o convite é para comer. Se envolver bom papo em volta de uma mesa e experimentar comida diferente, chego a balançar se pagarei a conta sozinho. Balançar e recuar diante da anemia da carteira.

Com algumas restrições, como rúcula, acelga e jiló, não costumo recusar nada no prato. Minha esposa, Beth, adora dizer que sou a cobaia perfeita para viagens e comida de rua. Em outras palavras, um avestruz de mala, passaporte na mão e estômago de pedra.

Só me torno uma criatura de hábitos quando vamos a um restaurante, em Santos. A Cantina di Lucca é onde eu e Beth costumamos comemorar as pequenas grandes vitórias, de aniversários a novos trabalhos, e levar pessoas queridas, como filhos e amigos.

Uma única vez, pedimos frango. Por sinal, de inesquecível recheio de presunto e queijo. Nas outras ocasiões, a mesa acaba preenchida pelo aroma de nhoque ou de lasanha. O primeiro é diversificado. Experimentamos quase todos os molhos da casa. A Cantina di Lucca tem o melhor nhoque da cidade, já escrevi neste site, numa crônica sobre os restaurantes da rua Tolentino Filgueiras, no Gonzaga.

No caso da lasanha, eu e Beth ficamos com a exclusividade, a monogamia gastronômica, que reforça o caráter metódico das visitas. Nunca comemos nada além de lasanha a firenze. Lasanha de camarão com molho de tomate e queijo derretido. Talvez seja comer como criança, que repete, repete até enjoar, estágio de distância ainda quilométrica.

O ambiente da cantina é tradicional, nas cores, na decoração, no uniforme impecável e na simpatia dos garçons. Só falta o italiano como língua mater e o nhoque da sorte, todo dia 29, para atar o laço de origens com a bota europeia.

Penso que um restaurante não pode existir apenas pela boa comida e pelo cenário que acolhe o prato. Um restaurante tem que ser feito de gente interessante, de histórias de vida, de quem trabalha nele ou de quem o frequenta.

Na Cantina di Lucca, a visita inclui duas entradas. Há o couvert com azeitonas pretas de Itu (pelo tamanho), tomate seco, sardela e acompanhamentos. A segunda entrada é a conversa com Marcelo Saraiva, um dos donos. Nós nos conhecemos desde o começo da década de 90, quando ele namorava Erika Rodriguez, minha colega de sala de universidade.

Os dois se casaram, trocaram de ofício e tocam o restaurante ao lado do pai dela. Sempre encontro Marcelo no restaurante, o que resulta num diálogo rico, com histórias da cantina e lembranças de quando nossos cabelos brancos eram profecias de distante concretização.

Desconfio que a conversa acaba quando, de forma simultânea, o prato chega à mesa e Marcelo, lorde inglês com raízes caiçaras, se cansa de ficar em pé no mesmo lugar.

Em um desses encontros, Marcelo me elegeu o sujeito certo para cobaia de uma nova sobremesa. O tradicional petit gateau, bolo de chocolate com sorvete de creme, ganhou uma versão alternativa: bolo de coco, recheado com goiabada. Impossível descrever em detalhes numa crônica. Cheiro e sabor precisam de testemunhas oculares para serem compreendidos nesta existência terrena.

A partir deste mês, as conversas tendem a rarear. Beth entrou numa dieta brava, visando combater os efeitos dos corticoides, presentes no principal medicamento para o tratamento da lúpus.

Eu, como retenho gordura faz tempo, uns 20 anos, resolvi acompanhá-la (não tão bravo assim) para não atrapalhar e, vá lá, cuidar da saúde também. No meu caso, são os efeitos literais de coxinhas, bolinhas de queijo, maravilhas, refrigerantes, pizzas e outras drogas lícitas.

O que me resta é escrever com o aroma na memória e a boca alagando de saliva. E o desejo de voltar lá, para o pedaço da Itália com conversa bem brasileira, assim que a exceção assinar a alforria alimentar.

Obs.: Texto publicado no site Juicy Santos, em 15 de agosto de 2016.

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