Os mestres cervejeiros


Marcus Vinicius Batista

No último feriado prolongado, Beth – minha mulher – foi trabalhar na casa de uma amiga, auxiliar na organização de um curso. No final do dia, ela me ligou para que fosse encontrá-la na casa da Mônica e do marido dela, Sérgio. Lá conheci Gustavo, filho deles, e um amigo, Leonardo, médico com fino paladar para cervejas e para a conversa.

Enquanto experimentávamos uma série de cervejas diferentes, que emagreceram o bolso do médico, conversávamos sobre cafés gourmets, exageros entre os apreciadores de vinhos, a preparação obcecada dos sommeliers internacionais e as diferenças entre cervejas. Eu, como bebedor profissional de refrigerantes, apenas degustava as pequenas garrafas, passava para Beth e admirava os rótulos. Sonhava com a carne e o pão de alho, promessa de campanha dos amigos que chegariam mais tarde. A Coca-Cola estava lá, no freezer, se preparando para o consumo duas horas depois.

A conversa boa foi permeada por uma TV que exibia episódios em sequência do seriado Game of Thrones, numa sala que se enchia de convidados com sacolas para o churrasco improvisado. A aula que o médico Leonardo me dava provocou as lembranças de amigos apreciadores, também estudiosos e fabricantes de cervejas artesanais.

As cervejas artesanais tinham sido o presente mais comentado no último Natal. O tesouro foi esculpido e fermentado pelo primeiro mestre cervejeiro desta história, Ricardo Rugai. Fomos amigos na infância e em parte da adolescência. O futebol e a mudança de escola e de cidade nos separaram.

Ricardo tentou a carreira como meia. Chegou a treinar no São Paulo. Eu fui um goleiro mediano que jogou pela Portuguesa Santista e passou pelo Santos. Acabamos universitários. Viramos acadêmicos e professores do ensino superior. Ricardo trilhou uma carreira brilhante, com mestrado e doutorado em História Econômica. Eu sigo jornalista.

Resumir o currículo dele não seria uma forma de lisonjeá-lo. A História, dele e da cerveja, nos aproximou novamente. A bebida nos tornou parceiros profissionais. Rugai soube unir o conhecimento acadêmico com a paixão pela cerveja. Ele é profundo conhecedor da origem e da evolução da bebida em diversas culturas e utilizou este universo como um dos motores para virar um sommelier (título não é exclusividade dos experts em vinhos) e um fabricante em caráter artesanal. 



A Nosotros é nome que estampa os rótulos dos sete tipos de cerveja que ele fabrica. A diversidade e o profundo nível de informação me levaram a ajudá-lo na organização de um curso, em 2015, sobre História e Degustação de Cervejas. Acabei assessor de imprensa dele e aluno por osmose.

Às vésperas do Natal, estava em dúvida sobre os presentes que compraria. Descobri que Rugai havia montado kits com embalagens especiais – criação da irmã dele, Renata, que trabalha como diretora de arte – de quatro variedades de cervejas. Problema resolvido. Três garrafas para meu sogro Lauro; três para meu pai; e uma para meu cunhado Márcio.

Os presentes nasceram para durar pouco. Menos de meia hora. Muita gente experimentando, muitos confirmando o bom gosto da produção do Rugai. No ano anterior, ele me deixou de presente uma garrafa da Nosotros após fazer a gentileza de comprar meu livro. 600 mililitros para quatro pessoas depois de dez dias na geladeira, conforme as orientações do mestre. Menos de um copo para cada um, o prazer em dez segundos e quatro ou cinco goles.

A Nosotros começa a se desenhar como uma brincadeira que deu certo como trabalho. Rugai, que produzia cerveja na casa do amigo Alcides, em São Vicente, teve que se mudar para uma casa na Vila São Jorge, em Santos. Lá chega a produz 300 garrafas por mês, estoque vendido para amigos e admiradores na Baixada Santista e em São Paulo.

Rugai mantém uma rotina de degustações e cursos para diversos públicos dentro e fora da região. A cerveja hoje compete com o ensino de História. De vez em quando, elas se unem quando Rugai estuda ou pesquisa e espera pela conclusão de uma das etapas de fabricação da bebida. Um olho no livro e outro no cronômetro. Precisão pode nos dar a felicidade da cerveja de produção limitada. A imprecisão pode aumentar o peso da lata de lixo.

Ricardo Rugai foi o sujeito o mais próximo possível do Papai Noel, mas o segundo mestre cervejeiro foi quem me apresentou o mundo das artesanais. Edwar Fonseca é também um amigo desde o tempo da adolescência. Sempre gostou de cerveja, refinou o paladar, estudou e se tornou um produtor e professor.

A primeira vez que prestei atenção em lúpulos, fornos, custos e na existência de um planeta além das pilsens foi no apartamento dele, em um aniversário há cerca de seis, sete anos. Fui à cozinha para apanhar uma cerveja quando vi os equipamentos na área de serviço. A curiosidade provocou uma conversa sobre bebidas e o início da exploração deste mercado, mais um hobby mesmo, naquela época embrionário. 



Dois anos depois, Edwar me convidou para acompanhar um encontro estadual de produtores artesanais, numa barraca de praia em frente à avenida Conselheiro Nébias. Ali, cerca de 50 pessoas aprendiam todas as etapas, discutiam detalhes de fermentação, falavam de seus fracassos e êxitos na fabricação e, principalmente, tomavam cervejas diferentes. Tinha gente ali no ramo há mais de 20 anos. Bebedor que virou fornecedor.

Edwar transformou a cerveja em um negócio prazeroso. Frequenta diversos eventos ligados ao setor, forma novos produtores de cerveja artesanal e representa uma marca de alta credibilidade no segmento. Às quintas à noite, recebe os amigos em casa para degustações e conversas que incluem o mundo das cervejas.

Quando penso nisso, me lembro de que dar aulas às quintas à noite ajuda a pagar as contas. Se serve de consolo, retribui o prazer de acompanhar o mundo das cervejas artesanais e, eventualmente, bebê-las dando aulas de escrita para o Edwar. Ele tem talento nato para a crônica – publiquei textos dele sobre as artesanais -, inversamente proporcional às minhas habilidades como bebedor.

O terceiro mosqueteiro é um colega de profissão, sinônimo de versatilidade. Eugênio Martins Júnior é um jornalista especializado na área cultural. Chegou a editar uma revista consistente sobre o assunto antes de se tornar um dos mais importantes produtores musicais da região. Eugênio se especializou em blues, organizou – por exemplo - a Mostra que está em andamento neste mês de abril em Santos, sempre com casa cheia. Um livro sobre o assunto está no forno e pode ser um presente no final do ano, ao lado de uma cerveja tão sofisticada quanto o texto. 



Soube das aventuras de Eugênio pelo mundo das cervejas quando nos encontramos pela primeira vez. Uma reunião no meio da tarde para falar de literatura e – quem sabe? – de um projeto conjunto. Atrasei-me uns cinco minutos para o encontro numas destas padarias chiques e o vi acompanhado de uma cerveja cujo nome, para mim, era impronunciável. Optei pelo suco de laranja. Diante de um mestre, faça o simples, diz a regra que evita gafes.

Eugênio gosta de cerveja forte, coerente com suas opiniões e seu grau de politização e de crítica quanto à nossa profissão em comum. Ele aprendeu – e compartilho da fé dele – de que os jornalistas devem inventar seus empregos em tempos de crise econômica e, antes disso, de desvalorização do ofício.

O jornalista que virou produtor musical virou mestre cervejeiro. Nasceu a Cais, uma cerveja na qual cada tipo recebe a numeração dos canais de Santos, referência cultural, histórica e geográfica para as origens daquela bebida e de seu mentor.

Um dos presenteados com a cerveja Nosotros no último Natal, meu cunhado Márcio conhece dois dos três mestres e, inspirado pela necessidade de superar o muro das pilsens, vestiu o equipamento de mergulho (copo, abridor e garrafas) e submergiu nas águas amareladas. Ainda não é um professor cervejeiro, mas se abraçou aos livros. Comprou três de uma vez para estudar o planeta cerveja. Uma das publicações mapeia marcas e bebidas do mundo todo, quase tão pesadas quanto um daqueles pequenos barris que cabem na geladeira. Cada visita na casa dele é a garantia de uma surpresa que brota na cozinha e enche meu copo.

E sabe o médico Leonardo, que aguçou todas essas lembranças e pessoas que viraram assunto naquele churrasco improvisado? Ele também produz sua cervejinha em casa. Modesto, fala que teve que jogar metade da produção fora. O restante evaporou pela garganta e virou história, não de pescador, mas de gente sentada em volta de garrafas, copos e tampas viradas de barriga pra cima enquanto o pão de alho e a carne não chegam.

Obs.: Texto publicado, originalmente, no site Juicy Santos, em 2 de maio de 2016. 

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