A mulher mineira

Dona Norvina, ao lado da minha irmã Catarina.
Início dos anos 80
Marcus Vinicius Batista

Nunca fui tão longe atrás de uma mulher. Só poderia ser amor para me fazer trocar o sono por uma madrugada e uma manhã na estrada. Amor suficiente para dirigir 850 quilômetros em dez horas, com uma única parada para abastecimento do carro, ida ao banheiro e compra de uma garrafa de água.

A mulher estava do outro lado do rio, na terra mineira onde nasceu e para onde retornou 40 anos depois. Ela optara por morar sozinha, como prova de independência e capacidade de reconstruir a rotina numa cidade pequena. Deixou Santos porque não conseguia mais se adaptar a uma cidade mais acelerada, mais poluída em vários sentidos e mais impessoal. Andava até a igreja e não reconhecia mais ninguém, dizia. O boa tarde havia morrido por atropelamento, talvez pelos carros que ela jurava trafegar a 120 (quilômetros por hora).

Aquela mulher me esperaria de braços abertos e mesa posta. Arroz branco, tutu, purê de batatas, quiabo babando e uma carne compunham o cardápio tradicional. Ali, onde o tempo não corria, se arrastava, havia sempre uma fornada de pão de queijo, tão amarelo como o queijo curado que descansava em cima da geladeira.

A bebida destoava na previsível Coca-Cola. Às vezes, eu sentia falta do Campari que me ela dava quando criança. Adorava assustar as freguesas quando eu me exibia com o copo, no ateliê de costura. A garrafa de Campari, mistério desfeito pela dona da bebida, era groselha Milani, doce como os chocolates que ganhava de suas amigas, a glicose para o pequeno bebum.

Naquelas bandas mineiras, a sabedoria era aliar comida e conversa. A cada visita, a mulher passava um café novinho em fumaça sedutora, assava uma travessa de pão de queijo, cortava uns pedaços de bolo nêga maluca e completava com pães de sal (média é coisa de gente caiçara) quase tão quentes quanto o café.

A dona da casa abria uma exceção para minhas visitas e de meus parentes. Deixava-se dormir mais tarde, para aproveitar as conversas no alpendre. Na entrada da casa, o noticiário local tinha mais relevância que os telejornais da noite; por sinal, ela só assistia a um deles. “Quem viu um, viu todos”, profetizou no século passado.

Dormir mais tarde não significava enrolar na cama até depois. Anfitriã é a primeira a esticar as pernas. Acordava com as galinhas, os cachorros da vizinhança e os caminhões de boiada que gritavam pelos escapamentos e cruzavam com as camionetes atulhadas de latões de leite.

Aquela mulher, que veio fazer a vida em Santos, soube nos convencer quando chegou a hora de voltar. Ela nos convenceu de mansinho, como mineira. Viagens periódicas cada vez mais longas. Sem brigas, prevaleceu a persuasão do já está feito.

A cidade pequena a acolheu como se nunca tivesse saído. A amiga que comeu hamburger pela primeira vez aos 70 anos. O dono da pizzaria que fez a entrega de carro e se esqueceu de perguntar o endereço. O dono do açougue que telefonava para perguntar qual parte do boi recém-abatido que ela desejava.

Quando a saúde titubeou, ela usou o jogo de cintura, resistiu, mas retornou à cidade maior, perto do mar. Aqui, ela também me deu uma experiência única. A única vez que abandonei uma sala de aula e retornei para casa. A memória falha sobre os detalhes de seu sepultamento, mas ela me concedeu a honra de carregar seu corpo – e me despedir solitariamente – duas vezes.

Minha avó, Dona Norvina, foi a pessoa mais sábia que conheci. Achei por anos que até o nome dela era único, até descobrir que existiram outras duas, nascidas na mesma época, na mesma cidade, de nome Luz. Deve ter sido moda, lá nos anos 20, mas como não a conheci, a lenda se sobrepôs ao fato.

São as lembranças que indicam Feliz Dia Internacional da Mulher, a todas elas que nos presenteiam matando saudades.

Comentários

Boa tarde, MARCUS, meu sobrinho-neto querido!
Conheci a Norvina, vendo-a por primeira vez acho que foi no final dos anos trinta. Não me esqueço disto — era na casa do Cesário em frente à qual ela tinha uma “venda”. Talvez fosse casado com uma irmã da Norvina. Não me lembro nada sobre o casamento dela com o meu irmão Altamiro; sei que foram morar na “Capoeirinha”, pedaço de cafezal pertencente ao Antônio Mesquita, casado com minha irmã Zina. Às vezes meu irmão ia trabalhar em outro pedaço de roça e era eu, menininho, a companhia dela em casa.
Embora nem tudo ali tivessem sido flores, decerto nasci uma pessoa “das raízes”, forjado no velho e triste cerrado do oeste mineiro. Digo-lhe isto porque todo sábado, 8h, assisto ao programa “Brasil Caipira”, há mais de duas décadas criado e sempre dirigido pela goiano Luiz Rocha — https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chrome-instant&ion=1&espv=2&ie=UTF-8#q=luiz%20rocha%20tv%20camara. Esse espetáculo televisivo é levado ao público pela TV Câmara (aqui em casa Canal 6).
Pois confesso não segurar as lágrimas quando assisto ao “Brasil Caipira”. Assim ocorre, penso eu, por as ditas raízes se me haverem internalizado no inconsciente. Cuida-se de uma volta ao tempo da vida no cerrado mineiro desde a época da convivência com a Norvina.
Decerto já vê você o quanto o seu escrito sobre a Norvina me tange as cordas sensíveis da saudade, vivência bem própria de um caipira mineiro sentimental.
Desejo que você continue a ser professor e poeta-filósofo. Sorte dos seus alunos e leitores.
Beijo!
Mozar Costa de Oliveira