O Feitiço de Áquila (Conversas com Beth # 15)

O açúcar e o sal
Marcus Vinicius Batista

Eu e você voltamos aos anos 80. Entre muitas adaptações no processo de recuperação de sua saúde, uma delas se faz presente todos os dias: a comida. Chegamos juntos à conclusão de que vivemos um remake gastronômico do filme Feitiço de Áquila, clássico pop da minha adolescência (e da sua infância).

No filme, Rutger Hauer e Michele Pfeiffer fazem um casal amaldiçoado na Idade Média. Ele se transforma num lobo quando anoitece. Ela, numa águia quando amanhece. Isso torna o amor impossível; andam juntos, mas sempre um na forma humana, outro como bicho.

Nosso feitiço implica em comermos juntos, mas nunca dividirmos o mesmo prato. Sua dieta, por conta da lúpus, é sal zero. Eu, por causa da diabetes, não posso comer açúcar.

É claro que há certo exagero neste enredo quase mexicano (melado como glicose), que finge levar às lágrimas (contém sal). Criamos informalmente regras, que inclui tréguas, cessar-fogo alimentar. E mudamos nossa relação com a comida.

Em primeiro lugar, a proibição de alimentos industrializados nos obrigou a cozinhar todos os dias. Conseguimos cozinhar juntos, saímos para comprar ingredientes e voltamos a visitar a feira aos sábados. Até caldo de cana reapareceu como figurante. Você tomou, claro. Eu só inalei o cheiro e recordei o sabor.

Passamos a fazer todas as refeições juntos e dividimos as tarefas na cozinha. Dividir é autovalorização de minha parte, pois sou mais um candidato à masterchef, enquanto você faz a jurada que conserta a obra de arte contemporânea (às vezes, bonita; muitas vezes, de difícil interpretação do significado).

Minha amizade com o sal se mantém intacta. Cuidamos da saúde, somos adeptos do bom prato (tanto a qualidade quanto o serviço mais barato), e nossos bolsos rejeitam a gourmetização. Imagina, pagar uma média com queijo em cima, chamada de pão gourmet. Culpamos a dupla carga de sal, claro.

Tentamos ser mais criativos nos temperos. Aposentamos os sazons da vida, transformamos manjericão, orégano, ervas e outras plantinhas dos potinhos em amigos diários. Até pózinhos indianos em tempos globalizados. Mas, ainda assim, certos pratos exigem o saleiro ao meu lado.

Cortamos as pizzas, as esfihas, as picanhas (mentira, essas foram arquivadas por falta de verba). De vez em quando, compro linguiças porque ninguém é de ferro (meu corpo precisa dele, uma questão nutricional). Aí, como isolado na cozinha para que você não passe vontade. O problema é o cheiro, rebelde ambulante.

Engana-se quem crê que poderíamos virar fãs das saladas. Gostamos delas, mas alimentos crus estão proibidos. Alfaces são coisa de museu alimentício. Como compensação, tomates viraram molhos, cebolas nos permitem chorar de alegria, cenouras e brócolis são parceiros das sopas aos complementos.

Prometi – e tento cumprir como político honesto; poxa, honesto – que cortaria os doces. Confesso que, de vez em quando, um traficante autorizado de cantina me vende um chocolate. Outras vezes, passo na farmácia e compro um zero. Comprar chocolate em farmácia é autoexplicativo para quem sofre de diabetes. Nada como deixar a alma calórica e vendê-la a um falso sacerdote.

Domingo é nossa data religiosa. Enquanto muitos rezam, nós pecamos pela gula. Dia de refrigerante, um pouco de comida com sal, até um cheese burger. Depois, monitoramento e pílulas anti-felicidade, se for o caso.

O feiticeiro que nos amaldiçoou falhou como no filme. Nunca estivemos tão juntos. O sal e o açúcar nos uniram, ainda como meias-verdades. Comer passou a ser um prazer, que havíamos perdido enquanto saudáveis.

O saldo é que você continua desinchando. Eu não perdi peso algum, mas penso como magro. É o que nossos pratos querem me fazer crer, sempre a partir de segunda-feira.

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