Edwar Fonseca
Cerveja é cerveja. Sempre foi.
Se parar para pensar e analisar friamente, a cerveja comum, bebida nos bares da vida é como água. Praticamente insípida, incolor e inodora. Todas as marcas são praticamente iguais. Diferem-se apenas por dar mais ou menos dor de cabeça no dia seguinte.
Bebo cerveja desde que minha mãe permitiu. Faz tempo. Mas cerveja sempre foi a mesma, amarela e super gelada. Tem bares que as servem a -5°. É o mesmo que lamber gelo. Sempre penso em como ficaria minha língua caso eu a encostasse em algo a esta temperatura negativa! Será que gruda?
Depois que eu participei de um curso e aprendi a fazer cerveja, minha vida mudou. Vi que existia vida fora daquela redoma virtual de amarelice e congelitude.
Como todo novato que devora livros e logo de cara acha que sabe tudo, fui ao restaurante com cervejas com todos os sabores e aromas possíveis. Amargas, doces, frutadas, sabor de ameixa, amêndoas, cítrico, ervas, cor de laranja, pretas, marrons, vermelhas, âmbar, quase brancas. Tudo o que eu queria.
Mas ela estava ali na minha frente, me desafiando, uma garrafinha de 355 ml, escura, com rótulo prateado, escrita com letras esquisitas. Não tentei traduzir o que estava escrito. Ela me provocava: “Quero ver se tu tem coragem”.
Decidi. Queria provar. Queria testar meu paladar preparado para os mais variados tipos de sabores. Eu li que tinha 14° de álcool contra os 5° das normaizinhas.
Avisei o garçom que queria uma, igual aquela, só que gelada, claro. De acordo com a literatura, deveria ser servida entre 8°C (temperatura de porta de geladeira) e 12°C. Não quente, mas também não -5°. Apenas fria.
Chegou o objeto do desejo. Mas estava trincando. Eu a segurava, para transferir calor da minha mão e, enquanto isso, me preparava para o que viria. Pensava em todas as possibilidades durante os poucos segundos que levaria da mesa até encostá-la no meu lábio.
Um gole suficiente. Pouco. Queria sentir o sabor. Degustar.
“Aaaafe, o que é isso?” Forte demais, doce demais, enjoativa, não gostei! Nunca imaginei que provaria uma cerveja para dizer: “Não gostei”. Arriscaria até a dizer: “Horrível. Não vou conseguir beber até o fim”.
Pensei: “Será que está estragada ou será que definitivamente eu ainda não estou preparado para entender esta cerveja?” Ninguém produziria algo tão ruim! Estava fora da minha compreensão.
Não consegui terminar a comida. Estragou o paladar. A cerveja ficou no copo. Fui vencido por ela.
Anos se passaram, cervejas e cervejas foram degustadas. Produzi várias dezenas de sabores e aromas diferentes. Das mais leves até as mais fortes, alcoólicas e as mais amargas possíveis. Tudo dentro do meu gosto.
Marcamos um encontro da confraria no mesmo restaurante. Para minha surpresa, meu amigo - sentado na cadeira ao lado - pede “ela”, a famigerada que estragou meu paladar anos atrás.
Vi ali a oportunidade da minha vingança. Podia acabar com a raça dela. Humilhar e rebaixá-la a nada. Balançar a garrafa e jorrar todo o líquido longe! Mas parei e pensei: “Esse cara é sommelier formado”. Então, ele deixou a cerveja ali, esquecida para que propositalmente esquentasse um pouco até atingir a temperatura ideal de consumo. Ela novamente me encarou.
Meu amigo serviu, virou para mim e disse: “Prova e me diz o que você sente!”. Quase falei de imediato: “Ódio”. Pensei: “O cara não manja e está querendo se aproveitar da minha opinião”. Ele provou e soltou um: “Pô, sacanagem”.
“Aha”, eu sabia que não estava errado! Eu iria alerta-lo. Não foi por mal.
Ele completou: “Que delicia! Sente o suave calor do álcool! Sente o sabor extra doce de frutas, como ameixa, para contrabalancear a forte presença do álcool”.
E, então, provei. Com calma, prestei atenção a cada detalhe. Eu é que era prepotente. De uma forma deliciosamente diferente, ela me venceu outra vez.
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