O terno abençoado


Renato Di Renzo no centro da roda. Fotos: Beth Soares

Marcus Vinicius Batista

O homem sempre duro com os problemas sociais estava fragilizado, poderia desmontar em lágrimas diante de dezenas de pessoas. “Vou parar de falar antes que (a voz) fique embargada”, ele conseguiu dizer antes de virar de costas, olhar novamente para os convidados e continuar a história. Em mais três momentos, nos cinco minutos seguintes, o arte-educador Renato Di Renzo flertou com o choro, fraquejou nas palavras. Era a abertura da exposição "Vai Passar - pra não dizer que não falei das flores."

O discurso improvisado e genuíno era o desfecho de horas de reflexão diante de um terno. Aquela roupa seria amaldiçoada, chegou a pensar. Duvidava de si próprio, das decisões tomadas, das semanas de ensaio. Renato não sabia se era legítimo usar aquele terno na Passarela do Samba Dráusio da Cruz. Ele comandaria a Comissão de Frente da União Imperial, dois dias depois avaliada com nota 10 e, mais 24 horas, premiada com o Estandarte Santista de melhor do Carnaval em 2015.

O terno, exposto na Galeria Braz Cubas, no Teatro Municipal de Santos, era a síntese de um homem e sua arte. O terno fechava um processo de criação que, por sanidade, envolvia dúvidas, avanços, retrocessos, descaminhos, retomadas, sensibilidade e intuição para empurrar adiante o coquetel que misturava arte, cultura, política e cidadania. 

O terno, ao lado de uma crônica
Quando ficou decidido, semanas antes do desfile, que a Comissão de Frente falaria sobre os desaparecidos políticos na ditadura militar, Renato e o restante do grupo Orgone decidiram que ele vestiria um terno. E que este terno seria coberto com fotos de vítimas jamais localizadas.

Renato pediu ajuda a uma empresa de publicidade, que tratou e organizou as imagens dos presos políticos assassinados. As fotos cobririam a roupa dele na avenida. Renato localizou uma costureira especializada na confecção daquela vestimenta.

Dona Maria residia em um quarto na rua Campos Melo, próximo da região mais pobre de Santos. Cortiços, índices sociais africanos, miserabilidade cercam a residência da costureira. Naquele quarto, toda a vida dela. Do fogão à cama, da mesa de costura a um computador. Dona Maria tinha um computador, onde guardou vários modelos de ternos à espera de Renato.

O terno feito por Dona Maria
Depois da escolha, Dona Maria esculpiu a roupa. Faltava somente acertar as mangas. Fazer a bainha. Renato soube, três dias depois de tirar as medidas, que Dona Maria morreu. Da surpresa à reviravolta. Uma vizinha se prontificou a acertar a roupa para o Carnaval. E contou que, horas antes de falecer, Dona Maria se limitava a repetir: “entreguem o terno ao Seu Renato, entreguem o terno ao Seu Renato”. No final das contas, com bainha garantida, eram cinco metros de tecido, coberto com fotografias de desaparecidos políticos.

Depois das vitórias, a retomada do caminho. Renato recebeu, na semana seguinte, o telefonema de Maristela Pinheiro. Ela mora em Natal, capital do Rio Grande do Norte. Em 1973, aos 10 anos, viu o irmão José Silton, de 23, ser preso e desaparecer. Amigos, na ocasião também companheiros de cela, disseram ter testemunhado tortura. 

Maristela assistiu às imagens do desfile pela Internet. “Renato, eu reconheci a foto do meu irmão no seu terno. Ele estava no seu braço direito.” Na exposição, um texto de Maristela ocupa o canto direito da galeria. Ao lado do testemunho, uma bandeira do Brasil, envelhecida pelo tempo, enrijecida pelas marcas de diversos protestos contra a ditadura brasileira. Uma bandeira que resistiu aos coturnos e presenciou tempos de flores em que se pode exorcizar os males pelas roupas, pelos discursos, pelo Carnaval. 

Detalhe da exposição Vai Passar 
O terno segue vivo, de pé, mas no canto esquerdo da galeria. Quem o vê pode – ao lado – ler sua história na avenida. Suas vitórias pós-desfile. O que nem este cronista sabia era que o terno carregava, antes de nascer, a beleza da vida mais (in)comum e a poesia de quem faltou em corpo, mas abençoou, com linhas e agulhas, em espírito. Horas de reflexão não conseguem explicar os nós que fazem uma roupa. Apenas as vozes que falham, embargadas no meio da comunhão de uma galeria.

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