Um beijo para o tempo




Beth Soares*

Rosa passa as tardes na janela. Perdeu a conta de quantas vezes foi confundida com uma namoradeira - aquelas esculturas de barro, com cara de espera, expostas em parapeitos nas casas. Só notaram que Rosa estava viva quando moveu a cabeça. Ainda assim, houve quem duvidasse do movimento e plantasse os olhos nela por mais alguns segundos, para encerrar a dúvida. Ela fingia não perceber, mas se divertia.

Raros eram os seus momentos de diversão, desde que Genaro partiu. Ele foi seu único amor, em 85 anos. Mas não foi o único homem. Teve outro, infelizmente para Rosa. Com ele se casou – segundo ela própria, para sua desgraça - e teve 6 filhos, o contrapeso do desamor do marido. Ele – a quem Rosa prefere não nomear – durante quase 50 anos negou-lhe o mais intenso gesto que exprime o amor entre duas pessoas: o beijo na boca.

Quando completou 65 anos, Rosa tinha 6 filhos, 10 netos, mas nunca havia beijado na boca. Até que enviuvou. Guardou a alegria secretamente por um tempo. Depois, deu de ombros e revelou a quem quisesse ouvir: ela estava livre para beijar e ser beijada. Queria sentir-se mulher. Não esposa, mãe, avó, dona-de-casa ou companheira. Queria ser Mulher, com “M” maiúsculo, com todo o desejo, dor e descobertas angustiantes e prazerosas que isso significava.

E como a vida de vez em quando cisma que somos merecedores dessas coincidências incríveis que nem os oráculos mais respeitados conseguem prever, apareceu na vizinhança um tal de Genaro. Ele era um estivador aposentado, de quem a dureza da vida no cais não tirou a delicadeza de alma. Um homem nobre, apesar da conta bancária sempre escorregar entre o azul e o vermelho.

Genaro, do alto de seus 86 anos era um monumento de 1,90 m de altura, para a aparentemente frágil Rosa, com sua negritude franzina, de pouco mais de um metro e meio. Genaro, quando a viu, quis abraçá-la, protegê-la, tê-la. Como pode amor assim nessa idade? – pensaram ao mesmo tempo, sem saber.

E contrariando estigmas criados por eles mesmos, começaram o namoro. De mãos dadas pela praça, pareciam jovens apaixonados dos anos 30. Mas estavam no século XXI! Genaro queria um beijo. Rosa também, mas não tinha a menor ideia de como fazer. Tinha medo, mas também tinha curiosidade. E a vontade...

Com delicadeza, devagar, envolvendo-a com seus braços ainda fortes de homem da estiva, lá foi ele invadir a boca da iniciante octogenária. Ela deixou. Não sem se esforçar para esconder o desconforto. Mesmo querendo muito, ela não sabia o que fazer com a boca, a língua, os braços, as mãos. Para não errar, decidiu ficar parada. “É estranho uma língua junto da minha”, confessou a si mesma, a quem também não soube responder se gostou.

Depois daquele primeiro beijo, centenas de outros se seguiram. Depois de um deles, Genaro quis mais. Numa noite de outono, ele foi buscá-la em casa, de táxi. Disse a Rosa que iria fazer-lhe uma surpresa. Ela sentiu um frio na barriga, mas respirou fundo e se deixou levar. Enquanto Genaro guiava o motorista, explicando-lhe o roteiro com toda educação que sua voz melodiosa derramava no ar, Rosa ficava mais ansiosa.

Pararam em frente a um lugar desconhecido para ela. Luzes em neon brilhavam no letreiro. Era lindo! Entraram. O carro deixou-os num hall que dava acesso a uma suíte. Rosa saiu do táxi sem se despedir do motorista e esqueceu completamente de verificar o valor da corrida. Sempre tentava dividir a conta das despesas do namoro, já que sabia que, como ela, Genaro precisava fazer malabarismo para que sua aposentadoria não terminasse muito antes do mês. Genaro, no entanto, nunca permitia. Talvez por orgulho de homem. Talvez por carinho. Ela preferia acreditar nesta última hipótese.

Mesmo com a coluna não muito boa, ele fez questão de entrar no quarto com ela no colo. Queria presentear a namorada com um gesto que ofereceria à memória dela um momento inesquecível: a noite de núpcias que, como Mulher, nunca teve.

Com vergonha, assim que desceu dos braços dele, direto na cama, ela puxou logo o lençol. Sem tirar os olhos dos dela, ele levantou-se, segurando nas mãos pequenas de Rosa e trazendo-a para junto de si. Abraçou-a longamente, até sentir seu coração entrar novamente no compasso que só os velhos apaixonados, depois de muitos desencontros vida afora, alcançam.

Genaro afastou-se calmamente e se encostou na parede oposta à cabeceira da cama. Rosa, ainda paralisada, permaneceu de pé, ao lado do leito. Foi quando ouviu a doce voz do amado pedir: “Deixe eu te ver?” Ela não entendeu muito bem o que ele queria. Ficou em silêncio. Ele repetiu: “Deixa eu te ver?” Rosa leu, nos olhos de Genaro, o que ele pedia. Teve vergonha. “Como alguém pode querer olhar para um corpo já tão massacrado pelo tempo? As marcas do rosto, olhe lá... já me acostumei a mostrar. Mas as do corpo?”

Lembrou-se que nunca havia ficado nua diante de um homem. E isso lhe parecia tão natural, que sequer havia considerado essa possibilidade antes daquele momento.

Decidiu cruzar a fronteira, apesar da insegurança e do suor nas mãos, agora novamente trêmulas. Sem conseguir encarar Genaro, Rosa foi descobrindo o corpo. Em inúmeros sentidos. A cada peça que caía, um muro era derrubado dentro dela. Quando tirou a última, levantou o rosto. Percebeu que ele tinha os olhos brilhantes. Leu neles a fascinação, mas agora era tarde. Já tinha feito. Genaro, sem acordar os olhos deitados nela, disse finalmente: “Você é linda! A mulher mais linda que eu já vi em toda minha vida!”

Rosa chorou. E depois riu. E logo em seguida amou. Foi amada. Mas o tempo teimava em correr e decidiu levar Genaro. E, caprichoso, o tempo passou a se arrastar diante de sua janela. Tentou adormecer a paixão de Rosa, mas fracassou. Não há espaço para o tempo nas memórias dela. E o que é mesmo o tempo?

* Obs.: Texto publicado, originalmente, no blog Poesia Cotidiana, em 5 de março de 2013. 

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