Os homens que humilhavam as mulheres



Beth Soares

Quantas vezes, após assistir a um filme de suspense ou terror, você saiu da sala de cinema ou desligou o aparelho de DVD aliviado por se tratar apenas de ficção? Ainda que horas depois tenha se visto no meio de um pesadelo, com algumas das cenas mais dantescas do longa-metragem, chegou a hora da acordar... e você estava, de novo, livre das garras do vilão da história.

Não foi o que aconteceu a Viviane Guimarães, uma jovem de 21 anos, estagiária de um grande escritório de advocacia, em São Paulo. A história dela se aproxima, em muitos pontos, à de Lisbeth Salander, personagem criada pelo escritor sueco Stieg Larrson, que em adaptação para o cinema foi interpretada por Noomi Rapace, na Trilogia Millennium (2009).

Assim como Lisbeth, Viviane era uma jovem talentosa. A estudante de direito da PUC-SP conseguiu estágio em um dos mais conceituados e influentes escritórios de advocacia do país, tendo, inclusive, recebido o prêmio Escritório do Ano no Brasil.

Acreditando que tinha a proteção ou ao menos a benignidade daqueles que se diziam excelentes profissionais, Viviane, a personagem da vida real, teve na ingenuidade o ponto fraco. Lisbeth, personagem ficcional, apesar de calejada pela aspereza da vida, não imaginou que seu suposto protetor cometeria um ato tão bárbaro. Ambas foram vítimas da violência física e emocional mais cruel a que uma mulher pode ser submetida. Foram estupradas. Os responsáveis pela agressão foram aqueles que, teoricamente, deveriam ser seus mentores.

As duas moças, sozinhas, humilhadas e aniquiladas, sabiam o quanto seria difícil provar o delito do qual foram vítimas. Seus executores calcularam milimetricamente cada passo, para que nada saísse do controle, após a concretização do crime perfeito. Eles tinham pleno conhecimento de seu poder. Sabiam que seria palavra contra palavra. E, como profissionais acima de qualquer suspeita, facilmente convenceriam a justiça que sua versão era a verdade absoluta. 

Noomi Rapace (acima) e Rooney Mara (abaixo)

No caso de Viviane, para que o assunto fosse de uma vez por todas enterrado, os criminosos estavam dispostos, na pior das hipóteses, a desembolsar uma voluptuosa quantia em dinheiro para comprar o silêncio dela. A Lisbeth nada foi oferecido, a não ser a liberação de seu próprio dinheiro, refém de um tutor sádico e cruel. Aliás, esses adjetivos também cabem, perfeitamente, aos agressores de Viviane.

Nos dois casos, ter o dinheiro nas mãos garantiria aos criminosos a satisfação de suas fantasias bizarras, sem a preocupação com a possibilidade de punição aos seus crimes. O poder circunstancial que tinham nas histórias era arremessado com requintes de desfaçatez e desumanidade na cara de suas vítimas. Viam-nas como joguetes, incapazes de defender a veracidade dos fatos. Era muito mais simples, para eles, criar outra verdade e vendê-la ao sistema como um elemento mais palatável. Pelas “vias normais” elas jamais conseguiriam justiça.

Lisbeth Salander decide fazer, ela mesma, sua justiça. Arma uma cilada para o seu protetor-abusador e o flagra cometendo, mais uma vez, o crime. Com as provas em mãos, sabe que tem ascensão sobre ele. Usa este trunfo para conseguir o que quer e se sentir mais forte. Nem de longe conseguiu se livrar do trauma, das lembranças atrozes da violência, mas ao menos agora sabia que tinham ficado para trás. Lisbeth usou o ódio e o resquício de amor-próprio para se vingar e iniciar uma nova vida.

Viviane também queria fazer justiça. Mas percebeu que já haviam armado, antes, uma cilada para ela. Testemunhas compradas, colegas de trabalho resignadas e coniventes, e os próprios criminosos de gravata já tinham preparado e decorado um discurso muito eloqüente. Não havia pontas soltas. Nenhuma verdade atravessaria a blindagem do cinismo e da astúcia daquelas raposas fantasiadas de terno, que se assumiram como a voz da justiça.

Viviane não conseguiu se livrar do trauma. As lembranças atrozes da violência infernizavam sua alma, dia após dia, noite após noite. Em uma delas, sabendo que não podia deixar para trás aquelas cenas que se repetiam incessantemente em sua cabeça, usou o ódio para liquidar a própria vida. Já não havia sequer um resquício de amor-próprio. O suicídio foi a maneira que encontrou para tentar acordar do pesadelo.

Versões sueca e norte-americana
Nós, o grande público, somos viciados em finais felizes. Exigimos isso da ficção, ainda que a história seja de terror, porque, no fundo, desejamos o mesmo para a vida real. As histórias de Lisbeth e Viviane se aproximaram em diversos pontos quanto ao horror da agressão que vivenciaram. Mas a arte, até quando conta histórias tristes, pode arquitetar um final que dê ao público uma sensação de que se fez justiça. Aí começa o distanciamento entre as histórias dessas personagens.

Na vida real, a possibilidade de grandes reviravoltas quando a história envolve poder, dinheiro e impunidade, é quase nula. Não se extingue o terror alimentado por esta combinação tenebrosa pela simples vontade de mudar o script. Na maioria das vezes, o roteiro se perde das mãos da justiça – sua detentora por legitimidade e coerência – e cai nas mãos do antagonista.

Infelizmente para Viviane, em algum momento a justiça abandonou de vez seu papel, se é que em algum momento ela o aceitou, ignorando que sua participação era primordial para que essa história tivesse um desfecho menos trágico.

Obs.: Este texto foi publicado, originalmente, no blog Poesia Cotidiana, em 13 de março de 2013.

Obs.1: Para entender um pouco mais sobre o caso, leia a reportagem "Somos todas Viviane", publicada no site Jornalirismo, em 29 de março de 2013.

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