Gladiadora


Foto: Beth Soares
Beth Soares

Quando cheguei na arena, não ouvi gritos. Ela estava praticamente vazia. Alguns poucos se dispuseram a sair de suas salas, de seus quartos, da frente de seus computadores e celulares, de dentro de si, para assistir àquela batalha. O que me confortava era saber que a maioria dos que estavam ali, na plateia, torciam por mim. 

Olhei para meus pés, vestidos de gladiadores, assim como minhas mãos, punhos, cabeça e todo resto. Mas aquela sandália me dava uma força descomunal. Eu sabia que quando os portões se abrissem seríamos todos juntos - corpo, mente, alma e coração – contra a fera. Mas meus pés precisariam estar tranquilos, para caminhar com passos precisos, nascidos do silêncio e da serenidade. Um pé de cada vez, se dividindo na tarefa do equilíbrio e da sustentação de um universo. 

Gladiadores são escravos. Não me esqueci disso. Seja qual for o motivo que os tenha levado àquela condição, eles não controlam o próprio destino. E quem controla? O senhor, que possui direitos sobre a vida e a morte do guerreiro? A plateia, que, ao observar de longe e tirar suas próprias conclusões dos fatos que vê, com um grito uníssono decide quem vence a batalha? A fera, que quer ver o guerreiro se ajoelhar e pedir perdão pelo atrevimento de desafiá-la? Ou todos juntos, numa assembleia romana visceral e sem regras, que cede à vontade do bem e do mal, alternadamente, sem muito critério? Não sei. Naquele momento não cabiam reflexões e filosofias. Só me cabia olhar para mim. De dentro. 

Os portões abriram e entrei, tentando disfarçar a ansiedade e o medo. Medo. Gladiadores não têm direito a temer. Quando se dão conta, estão no meio da arena, empunhando poucas armas e uma vontade sobre-humana de viver. Gladiadoras carregam mais um fardo (ou trunfo). São, para muitos, invisíveis. Há quem diga que nunca existiram. Não posso falar das outras. Eu existia. Estava ali. Existo. 

Esperei a fera sair da galeria no subsolo. Não sabia o que iria enfrentar. O pórtico foi aberto e lá estava ela. Sem rosto. Sem nome. Suas formas modificavam-se a cada movimento. Seu perfil direito me lembrava algo parecido com um lobo. O esquerdo, um homem. De frente, era difícil definir. Mas, em alguns momentos, posso jurar que uma luz furtiva refletia meu rosto. Joguei minhas armas no chão. Lutaria com as mãos.

Um amuleto cor de topázio, pequeno como uma pílula, protegia-me de qualquer mal.

O primeiro ataque veio da direita. Defendi com os braços, sangue, dentes, raiva, medo e ciência. Encostei o amuleto de topázio na carne dela. A fera tremeu. Fiz com que o engolisse. A ignorância, que da plateia assistia a tudo indiferente, não fez esforço para evitar. E a fera-lobo se retraiu. Mas não desistiu.


Da esquerda veio a segunda agressão. A fera-humana se aproximou, sedutora. Cantava uma música bonita. Me chamou para dançar. Prevendo o ataque pelas costas, num momento de distração, tentei sufocar-lhe o canto. Mas, com um único movimento, a fera escapou por entre meus dedos. Sorrindo, deu as costas para mim e cantou alegremente para a plateia, que aclamou o seu canto, jogou-lhe flores e lhe deu vivas! Entendi do que se tratava. Com a força de meus punhos, cérebro, garganta e nervos, arranquei meu próprio coração. Ele ainda pulsava em minhas mãos quando a fera caiu de joelhos.

Disforme, ela se arrastava quando veio de frente. Olhei no fundo daqueles olhos castanho-fogo, tão familiares. Levantei-a usando todas as minhas armas; braços, sangue, dentes, raiva, medo, ciência, punhos, mãos, cérebro, garganta, nervos e coração. Um pouco de fúria. Um pouco de amor.

Acredito que ninguém na plateia pôde ver. A fera, transformada em luz, entrou por meus poros. Mora, agora, em mim. Nasce toda manhã e morre toda madrugada. Dia após dia. Mas, entre esses dois momentos, vive, voa, existe. Livre. Para sempre. Venci. Vencemos.

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