Flores, fúria e a parede

“A dor vai curar essas lástimas
o soro tem gosto de lágrimas.
As flores têm cheiro de morte
a dor vai fechar esses cortes”.

Flores

(Tony Belloto/ Sérgio Britto/ Charles Gavin/Paulo Miklos)



Beth Soares

Acordou assustada, coração disparado. Seria mesmo a campainha ou o barulho estava só no sonho? Ainda estava tudo confuso, ela nem sabia direito se havia dormido na casa dela ou na dele. Sentiu um peso nos olhos, mal podia abrí-los. A busca pelo espelho revelou que aquela era sua casa. Antes de conseguir se olhar, a campainha soou de novo. Atordoada, desistiu do espelho.

Abriu a porta da sala e o entregador, um rapazinho franzino que pela quantidade de espinhas devia estar na casa dos 16 anos, sorriu. Estendeu-lhe um buquê esperando uma reação positiva do lado dela; a devolução do sorriso, a cara de espanto e, em seguida, a gratidão... coisas que quase sempre aconteciam. Mas o “quase” esconde um abismo nas entrelinhas.

Gestos de docilidade e romantismo podem ser o esconderijo perfeito para pequenas e grandes crueldades cotidianas. Era assim que ela lia. O menino entregador nem imaginava.

Ela segurou o ramalhete e fechou a porta. Não conseguia controlar os tremores. Não lembrava se havia agradecido ao garoto ou ao menos se despedido. Ele não tinha nada a ver com a história, coitado! Se sentiu culpada. Detestava desagradar as pessoas, dizer nãos... quase nunca os fazia. Mas dessa vez, o quase era sua única chance de salvar a si mesma. Era a porta da libertação.

Olhou para as flores e sentiu náusea. Pela primeira vez recebia algo assim. E foi triste. As pessoas dão flores quando querem celebrar as mortes que impõem ao outro. Uma flor para cada sorriso sepultado. Os espinhos vem de brinde. Brindam dores que ainda virão. Agora entendia porque flores são levadas aos sepulcros. E que é possível ser sepultado em vida.

Forçou a abertura dos olhos para enxergar melhor o presente. Viu tons variados e foi inevitável a comparação com os matizes de lilás e roxo de suas pernas, braços, costas e pescoço. O vermelho lembrava o batom que estreou na noite anterior... e o gosto metálico do sangue que logo depois escorreu em seu paladar.

Tomou coragem e voltou a procurar o espelho. Viu que seus olhos castanhos agora eram também vermelhos. Estavam decorados com uma moldura violeta, como aquelas flores miúdas, que morrem rápido.

Olhou de novo o buquê. Ao contrário do que dizia a música que ouvia na adolescência, toda aquela delicadeza era incapaz de fechar seus cortes. Agora, as flores simbolizavam sua dor.

Ela sabia que ele ficaria zangado se pudesse ouvir os pensamentos dela. Ficar zangado, aliás, era usual para ele. Um calafrio percorreu sua coluna dolorida. Queria sair correndo, mas não tinha forças para fugir dali. Olhou o sofá de dois lugares, a tevê antiga, o tapete poído, os quadros amarelados nas paredes que precisavam de uma demão de tinta... Aquilo era tudo que tinha. Teve pena de si mesma. E raiva também. Poderia ter vivido sem ter que comparar flores a hematomas. Poderia ter evitado o medo, evitando aquele homem. Teve vergonha.

Correu para o chuveiro. Água e lágrimas fizeram desmoronar o peso da ruína. Ali, ajoelhada na frieza do ladrilho, deixou-se escorrer ralo abaixo. Estava oca.

Precisava preencher o vazio. Era ela quem decidiria como. Decidiu encher de vida. Retomou o fôlego, as forças, a coragem. Escolheu abandonar o papel de vítima que havia encharcado e dissolvido na água. A única saída era o recomeço como outra personagem.

Não poderia esquecer o passado, mas à sua frente não havia nada. Olhou as paredes e sentiu vontade de escrever todas as frases engolidas, reações contidas e gritos reprimidos desde a infância. Assim o fez. Minutos depois, as paredes estavam cheias dela e de batom vermelho, a caneta que melhor traduziu seu idioma particular: a fúria.

Trocou o segredo da fechadura. Não havia mais lugar para segredos. Todos os “nãos”seriam revelados, libertos, expulsos, se fosse preciso.

Foram eles que receberam o homem quando ele tentou voltar. Ele encarou aquelas negativas com ódio. Ela, com alívio. Ele esperneou, chutou, socou... as paredes do lado de fora. O interior, o cerne, era dela.

Afagou a si mesma. Havia descoberto a melhor companhia. Jamais estaria só novamente.

Obs.: Texto publicado, originalmente, no blog Poesia Cotidiana, em 5 de setembro de 2013.

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