O dono do elevador

Marcus Vinicius Batista

Ele me encontrava sempre no mesmo dia e horário, ao meio-dia de segunda-feira. Só faltava o relógio de bolso, daqueles de controlador de estação ferroviária. Em dias de frio, ele me dava a sensação de que saíra de um filme antigo por causa das roupas e dos óculos de lentes grossas. Só faltava o apito que avisaria a chegada do trem. Para mim, aquele que saia da Estação Sorocabana, na avenida Ana Costa, e me levaria ao Vale do Ribeira. 

Sala que reúne imagens e objetos antigos da Unisanta
Ao meio-dia, meio-dia e alguma coisa, Seu Ricardo colocava a cabeça na porta da sala M-320B, na Universidade Santa Cecília, em Santos. Seu Ricardo – na verdade, Antônio Ricardo – era prevenido. Olhava para dentro da sala antes de trancá-la. Ao perceber que eu estava dando aula, balançava a cabeça positivamente e me pedia desculpas. A conversa viria mais tarde, em outros dias da semana, no habitat principal dele na universidade.

Um assunto nos unia e sustentava o diálogo de 20, 30 segundos por encontro. A pauta era única, inquestionável por ambas as partes. Eu entrava, o cumprimentava, indicava o andar e perguntava sobre o Santos. O futebol do time preferido dele era a única razão para fazê-lo falar e tirar os olhos do noticiário de esportes do jornal.

Seu Ricardo tinha problemas de audição. Eu tinha que elevar o tom de voz para me aproximar dele. A resposta brotava nos mesmos decibéis. O diálogo virava, então, debate público, que prendia o olhar de todas as testemunhas, apaixonadas ou não pelo esporte, no elevador. Gente que, muitas vezes, desconhecia o nome do velhinho que subia e descia dezenas de vezes numa manhã. Gente, eventualmente, sem paciência para repetir o número do andar, quanto mais para recitar um bom dia ou obrigado.

Seu Ricardo seguia impassível. Como todo aquele que pouco ouve, ele se tornara seletivo à arrogância e ao palavrório inútil. O silêncio permanecia essencial quando eu o encontrava em um terceiro ambiente da universidade. A sala dos professores, um endereço de transição ou de relativo isolamento, era o refeitório dele.

Jamais o incomodei ali. Apenas observava a fragilidade do senhor magro, sentado de costas para a porta, a devorar uma marmita que trouxera de casa. Naquele instante, futebol seria heresia. No máximo, o tudo bem que recebia a contrapartida mecânica de quem se entregava à liturgia alimentar.

Todo ano, Seu Ricardo participava de uma descoberta. Era “achado” por um dos meus alunos de Jornalismo, que percebia nele uma história a ser contada. Pena que uma história quase sempre limitada às paredes de um elevador, a um homem e sua função profissional. “Professor, pensei em fazer uma matéria sobre o tiozinho do elevador. O que você acha?” “Ah, o Seu Ricardo?” “Quem?”, ouvi a pergunta em uma das ocasiões.

Na última semana, senti falta dele. A insanidade da rotina diária nos faz compreender, sempre com atraso, que os ausentes não são patrimônio do cenário, mas a memória viva que deixa cicatrizes nos espaços após 30 anos de trabalho.

Entrei no elevador e não havia com quem conversar sobre a derrota do Santos. O banco preto estava lá, como sempre, em frente ao painel de comandos. Não percebi que a aula estava na metade, ao meio-dia, porque não houve chacoalhar do molho de chaves ou um olhar surpreso pelo vidro da sala.

Na sala dos professores, ninguém almoçava. Dois funcionários conversavam sobre trivialidades quando um professor entrou e disse sem rodeios: “Seu Ricardo morreu mesmo?”

O câncer o levou aos 86 anos. Entre o diagnóstico e o falecimento, uma semana. Seu Ricardo trabalhou até o final da vida, mesmo depois de se aposentar na Codesp. Por milhares de vezes, foi a ponte entre a pressa, a ansiedade, a euforia e a irritação que desaguariam em salas de aula. Testemunha dentro da caixa e seus botões, era ele quem decidia o número de paradas até o destino provisório de um dia.

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