O dia em que Luzia enxergou Woody



Beth Soares

Ver nunca foi motivo de reflexão para Luzia. Aliás, Luzia não era mesmo muito afeita à reflexão. Era daquelas mulheres do fazer, do agir, muito mais do que das elucubrações filosóficas, o que não significava, claro, menos inteligência.

Luzia via longe. Mas via longe no sentido figurado, o que representava uma poesia sem nenhuma graciosidade, sem aquele tom natural e inspirador, comum a quase toda metáfora. Luzia, havia algum tempo, enxergava menos a luz. E nem se dava conta disso.

Até que veio aquele sábado fatídico. Diazinho preguiçoso e solitário. Uma solidão nascida justamente da preguiça, que não permitiu sequer chamar Nice, a vizinha e amiga de infância que desde que decidiu se embrenhar pelos livros e passou quatro anos na capital estudando arte, adorava um tal de Woody Allen. Onde já se viu gostar de um cara com um nome estranho desses? Luzia decidiu ir sem Nice ao cinema, porque estava mesmo é com preguiça de ouvir tietagem.

E lá foi ela. Tomou o ônibus na praça. Sentou no último assento disponível e se sentiu sortuda por isso. Desceu trinta minutos depois. Apertou embaixo do braço a bolsa comprada do camelô, que era igualzinha à da moça da novela, esticou a blusa de linha e arrancou com os dentes o fio puxado pelo anel da mulher supermaquiada que estava parada na porta do ônibus, atrapalhando a descida dela e de mais uns três. Quase passam do ponto. Andou depressa o meio quarteirão que a separava do homem de nome esquisito. Fez cara de dondoca, jogou o cabelo para trás e olhou com desprezo para os baldes de pipoca que alguns casais faziam questão de exibir. Para ela não passavam de um exagero fedido.

Depois de entregar o ingresso para o menino de bigodinho ralo vestido no nada discreto uniforme do cinema, que parecia ser pelo menos uns dois números maior que ele, Luzia escolheu o melhor lugar, no meio da sala.

Ao primeiro sinal de diálogo, percebeu que as letras da legenda dançavam na tela, num borrado amarelo igual ao seu sorriso, quando todos ao lado, à frente e atrás riam como loucos. Desequilibrados, para Luzia. Não tinha graça não ver as letras. Forçou a vista o máximo que pôde. Fechou as pálpebras um pouco, como se assim pudesse aumentar o alcance da visão, e projetou a cabeça para frente, até ficar corcunda. Não se importava com sua autoimagem àquela altura. Queria ler a legenda. Tudo em vão.

Será que foi praga da Nice? Será que ela viu Luzia indo para o ponto de ônibus e deduziu o pecado? Não, não foi isso não. Luzia, escolada, havia se certificado da inexistência de testemunhas para seu crime perfeito. Era mesmo coisa pior. Miopia. Recusou-se a acompanhar as imagens do filme e correr o imenso risco de não entender nada, ou pior, entender pouco e estragar tudo. Estava decidida: não iria olhar para a tela

Desolada e sem querer se resignar com o prejuízo da compra do ingresso de final de semana, sempre mais caro, decidiu prestar atenção em alguns vizinhos momentâneos, os mais próximos, porque sua necessidade de graus só permitia que distinguisse a fisionomia de uns poucos. E eram ridículos. Riam como se houvessem saído de casa dispostos a se refestelar na gargalhada a qualquer custo, ainda que não achassem a menor graça. Sacudiam-se, abrindo a boca cheia de dentes, enquanto jogavam a cabeça para trás. Mesmo ela, míope, naquele escuro, podia jurar que conseguia ver até as obturações. Que triste! Por um segundo, ponderou que não ter dentes bons é pior que não ter olhos bons. Deu graças a Deus por nunca ter precisado ir ao dentista mais do que meia dúzia de vezes na vida. Antes míope que banguela. 


Na verdade, uma Luzia míope era uma piada pronta. Que ironia: justo ela, que a mãe havia obrigado a se tornar devota da santa protetora da visão, que lhe emprestou o nome, era míope. Protetora da visão de quem? Dela é que não era.

Pensou nos olhos do tal de Woody Allen. Ainda bem que estavam protegidos daquela cena dantesca: as bocas abertas rindo espalhafatosamente. Aqueles pontos pretos que ela jurava ter visto nos dentes daquelas bocas arreganhadas eram um terror. E para piorar, aquele povo todo ria de uma ópera.

Onde já se viu? Não viu, não é, Luzia? Pensou consigo, lembrando de novo da ironia. Luzia achou graça. Riu do seu crime perfeito e do quanto ele era desnecessário. Riu da sua microfelicidade por causa de um último assento vago no ônibus. Riu da mulher supermaquiada e do anel monstruoso, que enroscou na sua blusa de linha. Riu das bolsas de camelô e mais ainda das originais, tão parecidas e tão mais caras. Riu do exagero dos baldes de pipoca e do cheiro ruim que exalavam. 


Riu do mocinho do cinema que achava que aquele bigodinho fajuto o faria aparentar ter mais idade, e do seu uniforme que parecia emprestado de algum defunto maior. Riu do borrão amarelo na tela. Das obturações que já não tinha mais tanta certeza de ter realmente visto e das gargalhadas que as expunham. Riu de si mesma. E enfim gargalhou, junto com a multidão. 

Finalmente entendia Nice. Dividiria com a amiga, a partir daquele instante, a tietagem por Woody Allen.

Obs.: Texto publicado, originalmente, no blog Poesia Cotidiana, em 27 de agosto de 2012. 

Comentários