O segredo de Zuleica


Marcus Vinicius Batista

Acordei logo cedo, sem motivo. Não havia compromissos, muito menos trabalhar. Resolvi levantar da cama por causa do cheiro que vinha da cozinha. Era impossível crer que aquele aroma reaparecera. A fome, submersa e sonolenta em algum canto do abdômen, saltou como se estivesse tomado uma descarga elétrica.

Cambaleante, esfregando os olhos e arrastando os pés, cheguei à cozinha. Ali, a mesa estava posta sem grandes novidades estéticas. Os pratos de sempre, as xícaras de muitos anos, os talheres do casamento, sempre brilhantes.

O novo residia na travessa no canto direito. Os ovos mexidos, bem temperados, me esperavam. Ao lado dele, o saco de papel abrigava meia dúzia de pães. Brotava o café da manhã. A primeira lembrança do roteiro gastronômico-afetivo.

A manhã transcorreu sem sobressaltos, na rotina preguiçosa de quem está em férias e deseja, sem vergonha, que elas se tornem permanentes. Quatro horas depois, novo cheiro nasce do mesmo endereço. A primeira reação foi de dúvida. A Rússia é aqui? Quase. Era um menu adaptado à cultura tropical, um item tradicional e protegido contra pirataria via panelas.

Da cozinha, vinha um misto de whisky, carne e creme de leite. Os ingredientes se misturavam e seria impossível separá-los no olfato, muito menos no sabor, mas a memória faz o trabalho de descrever as partes que compõem o todo único.

Este prato exige complementos ritualísticos. Almoço com strogonoff de carne é na sala. Toalha branca, forro bordado, pratos, talheres e copos para visitas, ainda que todos sejam de casa. O arroz e a batata frita completam o elenco, como coadjuvantes premiados em diversos festivais internos de gordices.

Neste caso, a figuração pertence à bebida. Para os netos e os adultos-crianças, o líquido doce, negro e gasoso que o mundo inteiro idolatra. Para ela, a exceção, o vinho branco que finge ser de safra ideal e que se perpetua (na verdade, ganha sempre novos irmãos gêmeos) na adega improvisada no gavetão da geladeira. Quando ingerido, o vinho se transforma. O branco corresponde ao tom avermelhado das bochechas dela.

Na segunda etapa do processo de engorda, a refeição não termina na última colherada do terceiro prato de strogonoff ou no arranhar de garfos que raspam o restinho de molho. Como numa partida de futebol, há os 15 minutos de intervalo, quando se comenta o jogo em andamento e surgem as instruções para a sequência da pelada alimentícia.

O segundo tempo começa com velocidade, para derrubar o oponente que finge estar tímido no banquete. Na mesa, o pavê de chocolate, iguaria que mistura o chocolate amargo (chamado de chocolate do padre por causa da embalagem) e as bolachas maisena. A sobremesa, disputada aos tapas e colheradas em eventos da parentada, traz consigo o segredo dos artistas.

Embora escrita e disponível na primeira gaveta da cozinha, é impossível percorrer a distância entre o papel que registra a receita e as mãos dela que ornamentam e finalizam a escultura. Uma obra mal vista pelas testemunhas, obcecadas por fragmentá-la em pequenos pratos. A arte que se desfaz em menos de 30 minutos.

Cumprimos pena domiciliar, incapazes de fugir por conta da vida glutona, por quatro horas. Cochilo, conversa fiada, TV inconsistente. No final da tarde, toca a sirene do terceiro turno. É uma sirene sem badalo, um alarme que vem no silêncio do cheiro, armadilha previsível e sempre eficaz para fisgar os peixes que morrerão você sabe por onde.

Voltamos à mesa da cozinha. Ali, se espalham o doce e o salgado, o yin e o yang do reino dela. Não há vida monástica, moral filosófica ou pudores religiosos para se quebrar a ordem dos cosmos gastronômico. Doce e salgado se alternam, sem brigas, confraternizando entre bocas e sorrisos.

No mundo dos salgados, o pão de queijo reina. Não é aquela borracha elástica que você empurra para dentro, apressado, nas cantinas da vida. O pão de queijo é único, parido artesanalmente com o polvilho escolhido a dedo. É um pão de queijo com queijo, com o perdão da redundância.

O capítulo mineiro da novela alcança o clímax com a nêga. A nêga amalucada ganha como recheio a calda de chocolate, injetada cirurgicamente pelos poros abertos na massa do bolo. A calda deve ser rala e coroada pela cobertura de brigadeiro – eventualmente com chapéu de granulado. São heranças de uma senhora – a mãe dela -, quituteira que costurava ingredientes assim como moldava os vestidos das “freguesas”.

O jantar, para quem ainda tivesse fôlego, era uma experiência recente dela, uma combinação de poucos anos. Uma joia em lapidação constante, sujeita a deslizes mínimos, relevados por todos. A picanha vinha do forno banhada em sal grosso e sustentada por fundações de papel alumínio. Uma arquitetura de rocambole que, por vezes, era substituída pela criação original, também um rocambole – sem ser rocambolesco – recheado de queijo derretido, presunto e ovo cozido. A ordem dos atores nunca alterava o produto final, o prazer multiplicado em progressão aritmética.

Ambos os pratos exigiam, de minha parte, total concentração, de modo que dispensava quaisquer acompanhamentos. O amor, neste caso, impõe total exclusividade e dedicação.

O tour de gulodices descrito acima é fictício. As refeições nunca aconteceram no mesmo dia. Elas foram unidas como forma de organizar as minhas lembranças de Dona Zuleica, que faleceu há exato um ano. Minha mãe, claro, é muito mais do que uma chef de cozinha. Aliás, reclamava muitas vezes – entre o humor e a rabugice – de ter que cozinhar em certos domingos, perspectiva respeitada por todos e acatada quase com continência pelo primeiro a apanhar o telefone para pedir o almoço.

Comer, como todo bom mineiro prega em seus causos, é compartilhar a vida em volta da mesa. Ela era assim. Mais do que o almoço, o lanche ou o jantar, era em volta de pratos e copos vazios, de talheres sujos que colocávamos a conversa em dia ou discutíamos problemas das mais variadas intensidades.

Deixei alguns itens do cardápio de lado. Este texto é uma crônica, e não um tratado filosófico da alimentação. De qualquer modo, comer sempre foi para mim, na relação com ela, como o amor que se nutre a cada reencontro, que dispensa glamour ou falsa nobreza barroca. Comer mata a saudade, ressuscita a nostalgia, compartilha a experiência.

A simplicidade afetiva entre nós está no detalhe quase relegado para a nota de rodapé. Está no ingrediente do improviso, mas sem abdicar do talento. Jamais me esquecerei das singelas salsichas de uma noite de sábado, a última refeição infelizmente interrompida porque o coração dela resolveu gritar.


Comentários

Luís Alavro disse…
Grande Marcão, texto perfeito (como sempre) que conseguiu mostrar um pouquinho da Tia.
abç