A morte das maçãs


A cor do cenário estava diferente hoje pela manhã. O choque não deveria acontecer, pois já sabia que ali vigorava o luto. Mesmo passando de ônibus, dois segundos foram suficientes para que eu estranhasse aquele vermelho descolorido, que marca a impessoalidade das madeiras compensadas. 

Por baixo do arco-íris de frutas, brotava a cor insípida da madeira artificial que costuma proteger obras e terrenos. Madeira que serve para iniciar ou encerrar uma história. De canto, o tom amarelo de uma caixa de melões, última safra da barraca de frutas da praça Caio Ribeiro Moraes Silva, em frente ao Sesc, em Santos. Ali, apodrecia e se descascava uma paisagem amadurecida desde a década de 80 no imaginário dos santistas.

Dois homens e uma mulher recolhiam, de faces amarelas, mas de temor, tudo o que restava de um ponto tradicional. Para muitos clientes, a melhor salada de fruta da cidade, que matava a fome de final de noite. Para mim, o lugar que saciava o desejo de um copo metade mate gelado, metade abacaxi. Endereço que remetia afetivamente ao dia ensolarado de praia, ainda que à noite.

A barraca, assim como sua irmã na esquina do Canal 4 com a avenida Epitácio, precisa sumir do mapa. A ameaça é a multa diária de R$ 1 mil, valor incompatível com o estilo de vida de um vendedor de frutas. As barracas se juntam a outras laranjas de mesmo saco, que representam o final de uma época resistente à plastificação dos alimentos. As barracas de frutas 24 horas, assim como as dos canais 1, 2 e 6, foram varridas para as páginas internas do anuário de abusos de poder.

A Prefeitura se sentou sobre a justificativa da lei que a própria decretou. A proibição vale desde 20 de fevereiro. Quais interesses foram atendidos? Quais concorrentes foram beneficiados? Quem foi consultado para que esta decisão fosse tomada?

As perguntas são óbvias quando nos vemos diante de mais um ato que se caracteriza pela nebulosidade da injustiça, que se veste por justificativas de palavras gastas e vazias. A Prefeitura prometeu reavaliar a Campanha das Frutas. Em outras palavras, enterrou a ideia numa das gavetas do purgatório da burocracia. Até que se esqueçam das barracas ou que elas virem mais um ícone de nostalgia numa cidade acinzentada.

Santos, por vezes, se fantasia de cosmopolita. Adora se agarrar no Porto, em seu time de coração e na proximidade da Capital para sustentar uma pose que mal se mantém em pé quando se chega perto. O provinciano pretensioso sempre se desnuda nos detalhes, assim como uma barraca de frutas classificada como mancha na paisagem. Por mais que se cubra de mangas compridas, as tatuagens provincianas escapam pelos furos da camisa.

Santos, quando aceita medidas como esta, se parece com aquelas cidades interioranas, modelo Sucupira, que pararam na velhice do tempo de suas lideranças. Num município com 20% da população acima de 60 anos, velhos são as jovens lideranças, coniventes com medidas que desmontam tradições a troco de razões frágeis como frutas que caem do pé.

Para centenas de consumidores, as barracas de frutas eram a última parada antes de chegar em casa. Seja para um lampejo de vida saudável. Seja para um bate-papo sem futuro, mas de rico presente. Seja a garantia de um café de manhã diversificado, que dispensava a padaria como primeiro compromisso do dia. 

Se, na barraca do Sesc, eu resolvia a sede com o mate que alimentava a memória recente da praia, na barraca do Canal 4, comprava as melhores maçãs da cidade. Uma delas era eleita a companheira para a caminhada de meio quilômetro até em casa. Tenho saudades destes rituais que abandonei por meses e que não poderei repeti-los por conta de quem prefere degustar frutas de outra natureza.

Comentários

Samantha disse…
Cheguei neste Blog por meio de uma amiga, que inseriu uma postagem no Face com a transcricao de parte de seu texto e a indicacao do link onde se encontrava. Achei excelente! Claro, poetico e reflexivo. Sou santista. Moro em Sao Paulo ha alguns anos. E sou uma daquelas que tambem estranhou a extincao das barracas. Essa mania de Santos hoje espalhada, de se fazer sentir como cidade grande, seja atraves de arranha-ceus, da prepotencia burguesa de apelidar a Azevedo Sodre de "Oscar Freire santista", a extincao das barracas, e um sem numero de exemplos, faz com que a cidade perca sua verdadeira identidade, se banalize em algum lugar do limbo - pq deixa de ser a "nossa" antiga Santos. Tbem nao e Sao Paulo. O que seria, entao? -, e quebre o seu encanto. Seu texto reflete tudo isso. Parabens!
Anônimo disse…
Adoreiiiiiiiii. Parabéns
Nadja Soares