Turista de mim mesmo


Depois de meses em prisão domiciliar e profissional, recebi o indulto. Ainda tinha obrigações a cumprir, mas – com os grilhões mais frouxos nos tornozelos – poderia realizar meu sonho de consumo antecipadamente. Os ingredientes já estavam comprados, rastros de anos anteriores, prontos para o ritual de libertação, purificação e exorcismo.

Sentia-me transparente, mais claro que uma cobaia de laboratório. Vivia, como um rato que corria na rodinha, no mesmo percurso, na mesma ausência de ponto de chegada. Pensar sobre o passado recente era a única saída para entender que a rodinha não representava o único caminho. Havia, nestes dias, a clareira de areia, o espaço aberto. Sem perguntas, sem desconfianças.

Sentia-me sufocado. De vez em quando, o ar requentado pela barreira de espigões que lacram minha cidade me impedia de inspirar a maresia dos desejos escondidos na memória da infância.

Esperei o final de tarde. Quase implorava por retomar aquele relacionamento com lentidão, com serenidade, com paciência. Esperar me daria mais tempo para entendê-la melhor, compreender se havia mudado, perceber as novas nuances daquele corpo que jamais envelhece.

Com o sol dando avisos de fadiga, apanhei parte do armamento na sala, parte na cozinha e fui para a rua. Quatro quadras de caminhada, levando comigo uma cadeira de praia, um livro para ser relido e uma garrafinha d’água. Como armadura, um shorts surrado e o chinelo de sempre do último ano.

Depois de meses sob olhares penitenciários, voltei à praia de Santos. Não que tenha saído da cidade. Sem compromissos, sem algo a fazer, apenas o mar como vigilância. E o cheiro salgado dos velhos anos em ressurreição.

Uma hora depois, a tentação da barraca de bebidas reduzia a distância de um suco gelado a zero. A utopia gritava pelo copo meio mate meio abacaxi, mas o ambulante preferira outras freguesias. Na barraca, duas senhoras e um rapaz. Depois de rápida conversa sobre o cardápio, um suco de abacaxi. Enquanto o suco era castigado no liquidificador, o rapaz me perguntou:

— Você é de São Paulo?

A cobaia de laboratório só pôde devolver a pergunta:

— Estou tão branco assim?

Por educação, o rapaz sorriu e permaneceu em silêncio.

Suco em mãos, a volta para a cadeira de praia. Dez minutos de leitura foram interrompidos por um turista. Minha vestimenta indicava que eu estava de acordo com o linguajar nativo, exceto na tonalidade epidérmica.

O turista, vestindo uma bermuda jeans, retornava do mar. O andar cambaleante entregava a cevada protegida em lata de alumínio como a mandante da transgressão. O turista se aproximou, abandonou temporariamente o gingado etílico, olhou para mim e perguntou:

— Que horas são? Você é de onde?

— Daqui.

— Da Baixada Santista?

— De Santos mesmo!

Cortei a conversa. Se a coloração transparente impressionava a visão distorcida do olhar embriagado, era o momento de ir ao mar. Sozinho na água, não pretendia me esconder, mas pedir à Iemanjá por novas colorações. O mergulho selaria a retomada do namoro.

Quando olhei para a orla da praia, percebi de quem havia me divorciado. Depois de dias de banho de mar, testemunhei a morte e o silêncio da transparência. O azedume da detenção deu lugar à pele nativa de crocodilo (com exagero). E descascar confirmava, em cartório, a certidão de nascimento.

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