No Dia Mundial do
Rock, não entendo a necessidade de colocar o som no último volume para irritar
a vizinhança. Por que relembrar ícones como se estivéssemos em um velório? Ou cultivar
ídolos ainda pulsantes como novidades. Ou ainda vestir uma camisa preta para
desfilar na rua. A vontade não depende de um dia comemorativo. Acontece sem que
se perceba. Se você premedita, transforma-se em pose e soa ridículo,
infantilóide como um hit fabricado para jabás em FMs.
Precisamos de mais rock and roll. Não exatamente da
música em si, mas da atitude e dos valores que a cercam e a sustentam. Um ou
outro artista ainda consegue – mesmo dentro da indústria cultural – quebrar
barreiras, assustar por comportamentos julgados desviantes, enfrentar o
conservadorismo. E parir melodia e letra como um ato político.
O rock que permeia hoje a grande mídia – ainda bem que os
guetos resistem – é tão tradicional quanto ela, no sentido mais perverso do
termo. Finge-se único, adéqua-se ao pensamento dominante, flerta com o
politicamente correto, quase desprovido de opiniões e crítica. Na verdade, até apresenta
pontos de vista, tão pasteurizados quanto leite de caixinha. Parafraseando o
designer Wendell Penedo, em muitas situações, um cartaz de show merece ser lido
de cabeça para baixo, porque nas letras miúdas estão as grandes atrações.
Tenho também a sensação – por vezes, prazerosa – de que
parei no tempo. Ouço bandas que não mais existem. Ou cujo prazo de validade
aponta para a idade do meu corpo gasto. Mas me divirto com meu próprio discurso,
tão frágil quanto um sucesso do verão, de refrão-chiclete e movimentos
previsíveis de quadris.
Sinto-me
vivo porque ainda fico de queixo caído com vocalistas, guitarristas, baixistas
e bateristas que passaram dos 60 e poderiam ser meus pais, ainda que o CD deles
sofra com ranhuras. Como fazer se pais não tocam em bandas nem saltam com
fôlego de origem infinita? Sabedoria também se faz pela criação; não é prerrogativa
biológica.
O rock é um dos meus remédios psiquiátricos. Uma tarja
preta de acordes que cura as feridas diárias ou apaga um dia simplesmente ruim.
Apenas muda a dosagem. Sempre antídoto, jamais veneno. Pode ser um velho show
de Bruce Springsteen no Madison Square Garden, em Nova Iorque. Ou do AC/DC dos
anos 80 ao Homem de Ferro. Quem sabe os clipes cafonas do Kiss que me fazem rir
30 anos depois? Ou ver Freddy Mercury dominar o palco como se fosse a sala de
casa?
Precisamos, em ritmo de emergência, nos reapropriar do
rock. Não se trata de construir uma cruzada contra outros ritmos ou gêneros que
nascem, crescem, se reproduzem e morrem, como a antiga lição de ciências para crianças.
São passíveis de nossa ignorância, cientes de que representam filhos
artificiais de um olhar tão mercadológico quanto efêmero.
Precisamos
da energia adolescente que se forma quando há o primeiro contato com o rock. Necessitamos
da ansiedade por liberdade, que morre lentamente enquanto colocamos os pés da
mesa de centro, mais lentos, mais pesados e mais conformados.
Reabastecer-se do rock é compreender o que ele significa.
A resposta é individual, mas que parte de uma única semelhança. O rock extirpa
o politicamente correto, praga que corrói a cultura contemporânea. Tumor que
nos patrulha com a utopia do pensamento único.
O politicamente correto se espalhou pelo humor que
restringe piadas políticas, pelo cinema que finge espanto com as práticas da
alcova, pela música que banaliza e transforma sensualidade em fast-food de
programa dominical de TV.
Para combatê-los,
doses de deboche, cinismo, dúvida e sarcasmo, misturados com lirismo e crítica
social. Em outras palavras, dois ou três acordes, guitarras gritantes, baquetas
castigando pratos. E agora, peço licença, porque é hora de apertar o play e
ouvir alguém vestido de preto, antes que venha a crise de abstinência.
Comentários