Selvagens contra a motocicleta


Os dois eram transformistas. Dentro de um carro, adquiriam contornos animalescos, como se tivessem ingerido a poção do médico que os conduziria à vida sem amarras para a monstruosidade. Terceirizavam a culpa, focalizada nos demais motoristas – pior se fossem mulheres, que ousavam largar o tanque cheio de roupa -, nos agentes de trânsito. Máquinas de multar, vomitavam. No excesso de semáforos, que travavam o tráfego. É para beneficiar motoboys e ciclistas, irresponsáveis, chiavam como um coro desafinado.


Como muitos de sua espécie, atravessavam a metamorfose da ilusão motorizada. Dirigiam carros populares, financiados a duras penas, em prazos que transformam crianças em adolescentes. Só faltavam os capacetes para o teletransporte ao autódromo mais próximo.

Não se viam como ratos de laboratório. Faziam os mesmos caminhos, sempre nos mesmos horários, condicionados ao alimento premiado pelo microondas assim que chegassem em casa. Perfeitas cobaias para os testes de comportamento urbano.

Às sextas-feiras, a poção fazia efeito em maior escala e velocidade. Embora a dosagem fosse a usual, o ambiente os alterava. No fundo, a motivação de 48 horas sem a rotina, por quem juravam publicamente amores eternos, felizes como os colantes estampados nos traseiros. Dos veículos.

Os irmãos de congestionamento não se conheciam. No habitat a céu aberto, ninguém se olha, dialoga ou se importa. A ordem é chegar, na neurose das marchas que gritam, nos gritos de quem precisa passar para economizar um segundo.

A última sexta-feira os uniu. Um beijo entre os dois homens selou o compromisso. Um beijo no asfalto, careta e insuficiente para ser rodriguiano, talvez exceto pelo flerte com a violência perversa e permissiva.

O beijo tinha gosto de sorriso metálico. De pára-choque de tinta prateada, a cor do momento. Um toque carinhoso que os fez encostar, parar seus casulos e descer para verificar o estrago. Nas suas mentes, pensamentos gêmeos de acionar seguro, tirar dinheiro do outro, elaborar boletim de ocorrência, conversar com policiais, tudo que poderia atrasar ainda mais o acesso à recompensa alimentar.

Ali, na selva, macho que é macho se impõe. Um deles, na casa dos 25 anos, engravatado a la gerência, saiu do carro 1.0 aos berros.

— Caralho! Caralho!

O outro motorista, um pouco mais velho, jeitão de surfista dinamarquês, adeptos das griffes floridas, mas alienígena de praia, quase saiu pela janela e respondeu de bate-pronto.

— Caralho é o caralho! Porra!

O mais jovem procurava por arranhões. Tinha certeza de que havia escutado uma batida surda. Talvez fosse uma surdez alucinatória, mas como ouvir vozes que não fossem as do rádio? Diálogos impertinentes com cronistas esportivos, discordâncias do apresentador do jornal da manhã, karaokê em movimento com as FMs de sertanejo universitário. Eram seus amigos imaginários desde a infância, desde os tempos de passageiro.

Não achava nenhum amassado ou riscado, mesmo que houvesse algum. Mas a plenária neandertal exigia a tréplica.

— Porra o caralho! Quem vai arrumar essa merda? Tá querendo mi fudê?

A rodinha começava a se formar. Alguns estavam assustados com poesia urbana. Outros riam do idioma estrangeiro orquestrado por gestos de maestro no clímax da sinfonia.

O mais velho reagiu dentro do script.

— Não me fode! Quem vai resolver esta merda? Caralho!

— Já disse, porra! Caralho é o caralho!

De dedos em ereção e empatados no discurso, os irmãos iriam resolver a questão familiar no braço. Quando a plateia sonhava com sangue de final de tarde, sem a mediação da TV, um motoboy – paranoico com a vigésima e última entrega do dia – pegou em doação o retrovisor de um dos carros.

Não deu tempo para identificar o terceiro elemento. As testemunhas não se lembram de quem era o carro sem uma das orelhas. Os dois motoristas, em reconhecimento mútuo da espécie, abriram mão do cargo de macho alfa e entraram em suas caixas.

Uma prima minha jura que ouviu, mas não se recorda qual deles deu a ordem de caça. Até desconfia que, no fundo, a dupla de predadores expeliu em uníssono.

— Caralho, vamos pegar esse porra!

Obs.: Texto publicado, originalmente, no site Jornalirismo.

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