O cinema é uma ilha!


Sempre fugi de estreias. Nunca me incomodei ou me senti pressionado pelas rodas de conversa que intimidam: “como você ainda não viu o filme?” Tenho a nítida impressão de que a aglomeração de pessoas diante da sala de cinema no primeiro dia sintetiza um sintoma patológico coletivo.

Chegar primeiro como reprodução da pressa e do consumo que nos marca em brasa. Ter para descartar com o mínimo prazer. É aquele sujeito que, orgulhosamente, brada ser o primeiro a ver um filme enquanto oscila entre a ingenuidade – em tempos de Internet – e a esquizofrenia social.

As salas, quando lotadas, me assustam. Soam como um laboratório improvisado do comportamento humano. E bem pago pelo espectador em vias de se transformar na cobaia que comprova cientificamente a incivilidade humana contemporânea.

As salas cheias reproduzem nossos excessos. Comida em baldes que poderiam lavar garagens, incapacidade de apreciação do silêncio, neurose de corpos que indicam a chance de diagnóstico de hiperatividade, entre outros sinais que reforçam nosso individualismo e chutam para escanteio o respeito pelo ritual coletivo.

Nos últimos anos, descobri o prazer do anti-cinema. Ir ao cinema é o prazer da convivência com o outro. Do compartilhamento de emoções diante da mesma obra. Você convida alguém que gosta, estabelece certos combinados, assiste ao filme e estica para outra programação cultural.


Restaurante e motel estão inclusos, como construções culturais que – com o perdão do flerte com a vulgaridade – atingem o mesmo objetivo, em sentidos teoricamente diferentes.

O anti-cinema é ver um filme sozinho, numa sala completamente vazia. É como afrontar os donos de salas padronizadas, que definem a programação de olho nos cifrões. Estar sozinho na sala os obriga a atender o lobo solitário como um cliente vip, sem que o serviço exista de fato.

Só fui perceber anos depois, mas tive a primeira sensação de que a solidão cinematográfica era prazerosa na adolescência. Aconteceu numa sessão de O Último Imperador, às 13 horas, no extinto cine Alhambra, hoje um flat sofisticado (provavelmente redundância). Éramos três espectadores: eu, minha mãe e um amigo de colégio, convidado de última hora.


Fiquei inundado pela sensação de que o cinema seria meu por três horas. Nós nos espalhamos como se a sala de casa e a tela da TV, de repente, inchassem.

Só fui pensar novamente no assunto quando vi um filme sobre futebol americano, estrelado por Al Pacino. Era dia de estreia, a famigerada e maravilhosa sessão da meia-noite, uma noite de inverno. Na sala, três corpos estendidos (três casais),que lutavam para se aquecer por conta do ar-condicionado. O fracasso do primeiro dia talvez tivesse ligação com a resistência – naquela época – com o futebol americano.

Comprei a sala de cinema quando os cinemas estenderam suas sessões para o horário de almoço. Nada como assistir a um filme de Silvester Stallone ao meio-dia. Se comer antes, riscos à própria saúde. Se optar por uma refeição posterior, a fome virá como boa companhia diante do esforço físico alheio na tela branca.

Passei a frequentar os cinemas durante a semana, em horários de almoço. Vivi um exercício singular de egoísmo, com a vantagem de que não geraria incômodo para ninguém. A sala era minha! Numa das ocasiões, a atendente insistiu que não haveria exibição naquele momento, mas ela acabou desmentida pela frieza do telão. As máquinas não defendem o dinheiro patronal.

O cine solitário te oferece, como promoção involuntária, uma série de serviços. O combo inclui pernas esticadas na cadeira da frente, pés descalços sem riscos de impacto ambiental, prioridade absoluta na escolha do assento e, principalmente, o silêncio irrestrito antes, durante e depois da exibição do filme. Até porque ainda não desenvolvi o hábito de falar comigo mesmo em voz alta e desligo o celular assim que entro na sala. Sozinho ou não, penso que aparelhos eletrônicos não combinam com cinema.

Ir ao cinema sozinho não pode envolver qualquer história ou gênero cinematográfico. Vou ao cinema sozinho por solidariedade. Vejo somente filmes que as pessoas que amo não assistiriam. Logo, o critério não envolve animações infantis, comédias românticas, terror e bons roteiros.

Sobram os filmes de ação, de má qualidade, claro. Neste sentido, Stallone é o melhor remédio para escapar do real, sem arrastar outras pessoas para a minha insanidade. Parafraseado o próprio Stallone Cobra, ele e outros são a cura momentânea para os males que as próprias salas de cinema (e seus espectadores) costumam adotar, defender e perpetuar.


Não tenho repetido, nos últimos tempos, a experiência de isolamento nos cinemas. Ainda acredito que cinema deve ser visto em boa companhia. Mas sem estreias. Sem blockbusters. Sem horários-clichês. Assim, cultivo a saudade de não precisar de novas doses de anti-cinema para amenizar a insanidade audiovisual.

Obs.: Esta crônica foi publicada originalmente no site Cinezen.

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