Jesus dos flanelinhas


 A praça pertencia a ela. Aos nove anos, a menina não percebeu de imediato que seu santuário corria risco. Andar de skate na praça do Jesus crucificado era uma aventura dupla. Àquela hora, quase meia-noite, não havia ninguém por ali. Apenas uma menina deslizava em um patinete a cem metros de distância. Significava mais parceria do que concorrência.

O segundo motivo eram as rodas e rolamentos novos. O skate deslizava como nunca. E não jogava mais para a direita. Os R$ 40 saíram baratos demais para o prazer antes de tomar banho e dormir ao lado do irmão.

O pai cronometrava o tempo que a garota levava para contornar a praça. Os 23 segundos eram o novo recorde, a ser quebrado antes de virar o dia no mesmo relógio que registrava as marcas.

Assim que a menina se sentou para tomar água, a dupla invadiu o espaço dela. Se um não fosse gordo e o outro magro, poderiam passar por gêmeos. Bonés de cor idêntica, barba por fazer, camisetas brancas regatas, bermudas largas e chinelos de dedo, mais algumas tatuagens gastas pelo tempo nos braços. A dupla era figurinha carimbada nas redondezas há anos, perto do Aquário Municipal, na Ponta da Praia, em Santos.

Os dois entraram na praça com pressa, numa ação cirúrgica. Não enxergaram as duas testemunhas. Resmungavam entre si, como se não tivessem certeza do que fazer. Discordavam da estratégia, compartilhavam do alvo fixo.

O gordo tomou a dianteira e foi direto ao ponto. Direto ao encontro com Jesus crucificado, monumento que fica no centro da praça. Em volta de Cristo-monumento, um gramado e um depositário de velas feito de concreto. Vários pães decoravam o pé da cruz, enquanto algumas velas insistiam em queimar diante do vento leve e frio.

O rapaz se ajoelhou diante de Jesus. Não houve reza, palavras de afeto ou celebração. Ele enfiou a mão no depositário, retirou cinco moedas e reclamou:

— Hoje só tem isso!

— Procure por mais! Não é possível!

— Cinco moedas de cinco centavos. Não dá para nada.

O magro desviou o olhar e descobriu o que seria o tesouro da noite. Uma oferenda à esquerda, escondida atrás de um canteiro de flores. Ele se agachou e, sem cerimônia, em qualquer sentido, mexeu numa cesta de doces, o despacho que comprovava o sincretismo religioso do lugar.

O gordo se aproximou e apontou para um saquinho ao lado. Nada de importante. Até embaixo da vela os dois procuraram.

A menina estava quase paralisada. Apenas balançava os pés em cima do skate, mas não tirava os olhos da dupla. O esporte perdera para a religião. Ela olhou para a garota do patinete e decidiu formalizar a parceria:

— Vamos para lá, pai!

A menina se esqueceu dos “gêmeos” por uns dez minutos até vê-los novamente cruzando o acesso que os levaria à avenida da praia. O magro, desta vez, liderava a dupla. O parceiro caminhava apressado, de boca cheia, sem poder responder às broncas pela lentidão. Carregava uma sacola branca cheia de doces, que antes servira de apoio para a cesta.

A pressa era para alcançar um motorista que ligava o carro. Mais moedas à vista. A menina completou sua rota circular, sobre quatro rodas, pela praça, sem a ansiedade do recorde pessoal. Apenas parou ao lado do pai e disse, como se lamentasse:

— Pai, eles estavam roubando Jesus!

O pai preferiu compartilhar o silêncio da vítima.

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