Um homem (in)coerente


Celso Lago é um cantor que teima em ser incoerente. Ao vê-lo pela primeira vez, é compreensível confundi-lo com um soul man ou com um sujeito adepto de repertório mais agressivo, de voz que exige timbres mais altos no limiar do barulho. Um cantor perfeito para os fiéis de baladas onde se é impossível conversar. No máximo, aderir à competição de berros ao pé do ouvido entre frases dispersas.

Com quase um metro e 90 de altura e o corpo de quem faria a segurança do próprio show, Celso Lago interrompe as conversas de mesas de bar quando abre a primeira música. De um homem predestinado a se impor pela força, ele exala a delicadeza dos sábios. Quem o acompanha pelos botecos, restaurantes, casas de shows, teatros e até navios de cruzeiros se silencia para compreender o paradoxo com o microfone em mãos.

Revi Celso Lago em seu território. Só o conheço ali, no palco. Pompa e circunstância não existem. Como um operário musical, basta um banco, uma pasta com partituras e um músico ao lado, seja ao piano de um navio ou ao violão de Bheto Alves, parceiro de vida noturna em boteco. Ao fundo, um cenário imaginário que se transforma após os aplausos de continue, por favor.

Como muitos seguidores, sai de casa para assisti-lo. Seu território, um boteco na esquina de duas vias de trânsito intenso, numa quinta-feira qualquer. A voz de Celso calou – para prazer de seus ouvintes em coro e olhares fixos – o ruído linear da vida moderna entrecortada por semáforos.

O cantor, reconhecido no microcosmo do palco que aproxima público e voz e anula o bate-papo paralelo das mesas, parece carregar a música popular brasileira nos ombros. Talvez sejam as costas largas de quem sangra a fragilidade de Djavan e transpira a delicadeza de Emílio Santiago na potência corporal de Tony Tornado.

Celso Lago é um craque discreto. Reverencia quem o agradece pela poesia em voz alta e engata uma conversa pós-show com quem se chega perto dele para dizer obrigado. A riqueza de repertório permanece latente nas análises musicais e nas escolhas e pedidos atendidos em mais uma noite única.

A discrição do craque mora na habilidade do crooner. Em navios de cruzeiro, Celso sabe que está a serviço da música. Contentar-se, mesmo que provisoriamente, com o anonimato é a compreensão mais profunda do papel do artista. Nos navios, a impressão é de que o cantor pode prescindir de si para que a música de outro, em absoluto, prenda a respiração de quem o ouve.

A postura é inabalável também em estúdio. No CD Prisma, lançado no ano passado, Celso divide a interpretação com Larissa Finocchiaro, mais a participação de Renato Braz. Em Prisma, Celso é feito de vidro, no limite da ruptura em cacos, dando vida ào lirismo de Bruno Conde. É um trabalho que reivindica ser ouvido várias vezes, para que possa ser honesto com as múltiplas leituras possíveis, na voz, na letra, na melodia, e no casamento coletivo entre elas.

Em Santos, Celso está proibido de ser mais um. Nos botecos e outras praças, seus pares, amigos e ouvintes ocasionais descobrem – cedo ou no final da noite – que a casa está sempre aberta a versatilidade da MPB. O motivo é que o intérprete, capaz de dar às escolhas alheias variações que jamais comprometeriam a versão original, ao mesmo tempo que nunca soariam como imitações clonadas ou histriônicas.

Celso Lago nos enganará mais uma vez neste sábado, dia 24 de março. Fingirá ocupar o palco do Teatro Guarany com a estampa física para preenchê-lo com a suavidade que mascara a força de sua voz. Celso se apresentará ao lado de Nadja Soares no show “Chico Buarque em três tempos – mulheres, crônicas e política”.

Infelizmente, Chico não encontrará Celso. Não vai testemunhar um intérprete alcançar as flores na violência da ditadura. Mas poderia ver o cantor de aparência improvável enriquecer seus clássicos com a coerência de quem sempre consegue parir, sem dor, uma nova via musical.


Obs.: Texto publicado originalmente no site Culturalmente santista.

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