A negação pelo invisível


Ao contrário do discurso que se jura inocente na TV, o esporte não é mera brincadeira ou entretenimento. Além do negócio de bilhões de dólares, os esportes profissionais representam – acima de tudo – um termômetro cultural, que concentra formas de pensar, valores, sentimentos, inclusive os perversos, que pareciam (ou deveriam) hibernar nas entranhas de torcedores, atletas e dirigentes.

O racismo é um destes rastros de selvageria cultural que insistem em permanecer nas quadras e campos como reflexo das sociedades que o praticam e, em parte, lutam para combatê-lo; em parte, para negá-lo com feições cínicas de horror.

Dois casos recentes de discriminação resultaram em sanções pontuais, porém incapazes de alterar o estado de coisas, de interferir no esporte como segmento de mercado. Na NBA, a liga de basquete profissional dos EUA, a vítima foi o armador Jeremy Lin, filho de imigrantes de Taiwan. Lin, economista formado por Harvard, é uma das sensações da atual temporada.

Na última sexta-feira, o time do armador, o New York Knicks, perdeu para o New Orleans. Na versão para celulares e tablets, a ESPN – rede norte-americana de notícias esportivas – publicou a manchete: “Chink in the Armor”. Traduzindo: fissura na armadura. Mas o termo “chink” também é utilizado para humilhar imigrantes chineses.

A emissora, depois de criticada, pediu desculpas ao jogador, demitiu um funcionário e suspendeu um de seus âncoras. Outro funcionário, do braço radiofônico, está sob avaliação.

Na Europa, Liverpool e Manchester United disputaram mais uma partida pelo Campeonato Inglês de futebol, na semana passada. O uruguaio Luiz Suaréz, atacante do Liverpool, se recusou a cumprimentar o zagueiro francês Evra, do Manchester. O zagueiro Rio Ferdinand, em solidariedade ao colega, não deu a mão ao uruguaio.

Suaréz havia sido suspenso por oito jogos por ofensas racistas a Evra, chamado de negrito. Por ironia, Evra marcou um dos gols na vitória do Manchester e comemorou em frente ao jogador uruguaio. O técnico do Manchester, Alex Ferguson, afirmou que Suaréz envergonhava o Liverpool. Pressionado ou não, o uruguaio se viu obrigado a pedir desculpas em público no dia seguinte.

Ambos os casos são recentes, estão frescos no noticiário. Mas qualquer pesquisa mais apurada apontaria dúzias de exemplos, inclusive aqui no Brasil. A maioria deles é marcada por punições brandas ou vistas grossas, quando não prevalece a negação das atitudes. Muitas delas são sustentadas na falácia da democracia racial ou na conveniência de um país miscigenado.

No primeiro episódio do Campeonato Inglês, o que provocou a suspensão, o presidente da FIFA, Joseph Blatter, tentou negar a prática de racismo ao afirmar que tais diálogos são comuns dentro de campo e que não são o que parecem. Seriam carinhos? Gesto de lordes, já que aconteceu em terras britânicas? Blatter acertou em um ponto: infelizmente, são comportamentos recorrentes no futebol.

O dirigente somente se esqueceu de que a entidade na qual preside nunca combateu com veemência situações de racismo, que se acumulam em países como Espanha, Rússia, Polônia, Itália, apenas para se limitar a endereços onde brasileiros foram chamados de macacos.

Virar as costas para a discriminação racial funciona como a estratégia mais eficiente dos agressores. Campanhas publicitárias eximem os omissos se deslocadas de punições contundentes.

Nestas duas histórias, a resposta se deu de maneira imediata por conta da ressonância elevada na mídia. Os agressores foram expostos até porque vomitaram publicamente seus preconceitos, talvez crentes na impunidade ou cegos pela ilusão da naturalidade de seus atos.

O esporte também se vê de mãos atadas diante de um problema que nasceu e cresceu fora dele. O racismo é uma chaga cultural que se faz presente, por exemplo, em todos os conflitos bélicos de hoje. Direta ou indiretamente, age silenciosamente nas relações sociais. Um estádio ou um ginásio catalisam este comportamento que traduz a intolerância e a dificuldade de lidar, compreender, respeitar e conviver com quem pensa ou simplesmente é diferente no tom da pele, na condição social ou na origem geográfica.

O esporte profissional, quando se transforma em palco de manifestações racistas, além de se eximir das próprias responsabilidades, se solidifica como motor que renova forças para quem não vê a discriminação como uma violência.

Negar o racismo é perpetuar as algemas nos pulsos de quem é visto como ameaça, como inferior na capacidade física ou intelectual ou como usurpador de empregos em tempos de globalização das equipes e dos torneios.

Pensar no esporte profissional como uma brincadeira é desejar a transformação do lúdico em máscara para a agressividade humana. O esporte como mercado é demasiado exposto para não se enxergar como referência para a observação de atos e discursos criminosos.

No futebol, as confederações – via de regra – fingem se subestimar para não mexer numa ferida que poderia atrapalhar a expansão dos negócios. Antes de escondê-la com curativos, a ferida traz a cara da omissão, que significa mais do que uma falha no entendimento do racismo como um tumor. Significa cumplicidade diante de um entretenimento que forma e reproduz perspectivas de mundo, traduzidas em violência perpetrada por gente que integra, em definitivo, do espetáculo.

Comentários