Adeus ao trovador (Contracapa # 18)


Santos, fascinada pela galinha dos ovos de petróleo e boquiaberta diante dos espigões artificiais, talvez não perceba a perda que se deu na última semana. Perda que esfaqueou a cultura da cidade, mas minúscula para os que compartilham do sonho megalomaníaco de falso progresso. Poucos enxergarão a melancolia entre os artistas, como resposta crítica e anônima aos incômodos, injustiças e infelicidades do cotidiano.

A morte de Zéllus Machado, aos 53 anos, nocauteou, temporariamente, quem se sensibiliza com a cultura caiçara. Mais do que isso, com a cultura popular em Santos. Cantor, compositor, poeta e ator, Zéllus representava um dos maiores símbolos da arte como centro de contestação, como olhar inquieto das fragilidades sociais, como voz sincera que persiste em chocar os confortáveis, fragilizar as certezas, fortalecer as perguntas tão indecorosas quanto decisivas para o crescimento humano.

Quando me lembro de Zéllus Machado, vejo um violão em seus braços. Era a marca registrada do trovador, sempre a postos para outro verso, mais uma palavra sarcástica, um texto para balançar as convenções. A primeira vez que o vi foi na ante-sala do Teatro Municipal de Santos. Ele interpretava um cafetão numa cena que antecedia uma encenação de Plínio Marcos.

O aperitivo foi mais indigesto do que o prato principal. Não que provocassem impactos diferentes, mas de Plínio Marcos todos sabiam o que esperar. A virulência do cafetão transcendia a violência e a opressão de mulheres. Zéllus incorporava o machismo como produto de exportação, cru a ponto de nos esquecermos de que era um cafetão quem nos dava os recados.

Zéllus gostava da rua, da aproximação improvisada com o público. Não se escondia nas coxias e nos camarins. Como um menestrel, tinha na ponta da língua o discurso que se encaixaria na balança dos ouvintes, para desequilibrá-la, para acrescentar novos valores, para refazer suas medidas.

Zéllus fez parte de um grupo de artistas que se renovam como reação visceral aos males que os machucam, alheios ou não. Um grupo que flerta com a arte como política em essência, sem se render à primeira oferta comercial ou às tendências que transformam a cultura em bibelô da sala de estar.

Zéllus entendia a cultura como alimento único para a sobrevivência de uma sociedade. O violão era o antídoto para as leituras apressadas e consumistas das relações humanas. O humor apequenava a intolerância, o preconceito e a ostentação social que, por vezes, padronizam manifestações artísticas em embalagens de politicamente correto.

Não via Zéllus Machado há algum tempo. Conhecia o artista e, desta maneira, foi a última vez que o encontrei. Aliás, ele transpirava seu papel de artista de tal forma que o homem e seus obstáculos subjetivos permaneciam encolhidos, silenciosos em algum canto daquele corpo de personagem que ocupava espaços, com sede de protagonismo.

Quando o assisti pela última vez, carregava seu violão por diversos quartos de um antigo casarão da rua General Câmara, no Centro. Era uma peça composta por cenas independentes, cada uma delas coerente com os cômodos da casa-cenário. Zéllus transitiva pelos espaços para reiterar o ar rodriguiano que sufocava e aliviava o espetáculo.

A ausência de Zéllus Machado precisa servir de alerta diante da encruzilhada cultural desta cidade. A perda de um símbolo deve nos guiar para entendermos qual cidade-cultural desejamos abraçar. Se formos inteligentes, perceberemos que a obra de Zéllus fala por si mesma como resposta.


Em tempo: Zéllus Machado será o homenageado no Festival Santista de Teatro Amador deste ano. Nada mais justo. nada mais coerente. 

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