Os cínicos que estupram

Confesso que não liguei o nome à pessoa. Daniel era mais um personagem destinado ao esquecimento quando deixasse a TV. Outro bonequinho sem camiseta que repetia o padrão estético de anos de programa, como variação sobre o mesmo tema.

Confesso também que precisei pesquisar para descobrir quem era Monique, a suposta vítima do suposto estupro. Utilizo o termo suposto porque o as negativas de todos expuseram o espetáculo. Suposto porque não tive interesse em ver as imagens, que nada acrescentam ao assunto. Monique seria a versão feminina de Daniel, com sobrevida traçada nas capas de revistas masculinas.

Reconheço que não escapei da avalanche de desinformação e irrelevância quando o BBB se renova (ou extrapola) como uma das polêmicas dos últimos dias, não importa o canal ou o programa. Mas uma situação como essa indica quem somos ou como nos comportamos a partir do conteúdo da TV ou como nos projetamos nela. O incidente no Big Brother representa, simbólica e literalmente, a TV aberta que consumimos e, por vezes, idolatramos.

A corrente de cinismo se inicia na produção do programa, impregnado de violência simbólica. As relações entre os participantes são fomentadas a partir de jogos e premiações, com estímulo às articulações políticas, traições, falsa afetividade, entre outros elementos de manipulação. Abraços, beijos, choros e até ofensas são banalizadas em prol do show. Até aí, não há maiores novidades, salvo para os súditos cegos que crêem no reality show como a absoluta expressão da verdade.

O cinismo se prolonga nas respostas diante da possibilidade de um crime. O BBB, conforme as reações e a palavras da direção e do apresentador, parece se constituir em um mundo paralelo, onde as leis brasileiras não se aplicam. Ironias e jogo de esconde-esconde permearam a ignorância geral perante a barbárie nas relações de gênero no país, culturalmente machista desde a maternidade. Amenizar um possível crime sexual por dinheiro é tão sórdido quanto praticá-lo.

A concorrência também vestiu o manto da hipocrisia. Aproveitando-se da desgraça da líder – que, por sinal reverteu o telhado de vidro em audiência nos dias subseqüentes -, as demais emissoras da TV aberta exploraram o caso como um crime que jamais cometeram.

Fingindo-se horrorizados ou cercados de pseudo-celebridades em pose de comentaristas, apresentadores dissecaram o BBB como se seus empregadores fossem os baluartes da televisão educativa. Muitos apresentadores estavam mais boquiabertos do que religiosa diante de bordel, como se não soubessem o que os esperava.

Mas o cinismo mais enigmático se manifesta do outro lado da tela. O público se agarra no moralismo de liquidação enquanto acompanha, hipnotizado, a ilusão do glamour. É a audiência que adora exercitar o papel de promotor, juiz e carrasco e se deleitar com o poder dado a conta-gotas pela emissora produtora do programa. Isso quando o fornece.

Parte dos espectadores, que colocam a vida alheia no topo da pauta, enche o peito para determinar as soluções e os desfechos como se não compartilhasse ou se omitisse dos fatos que o rodeia no cotidiano. Exalar indignação, com a segurança do distanciamento, é outra dose de hipocrisia, reforçada pelo silêncio que esconde intolerância, individualismo e pressa em julgar e condenar.

Um exemplo comum nestes casos são as mulheres mais machistas que eles. Para elas, a mulher sempre seduz o coitado do agressor. Como se a sedução resultasse necessariamente em coito. Como se o homem vivesse para atender o diabo em forma de feminino. Cínicas, apontam o dedo sem piscar os olhos em frente à TV.

O falso caso de estupro no BBB engrossa a lista de falsas polêmicas do entretenimento que alimenta a TV comercial. Posar de surpresa ou levantar a bandeira da indignação com o novo-velho indica como injetamos diariamente um entorpecente como única saída para o vazio que nos atormenta, assim como nos recusamos veementemente em denominar a existência deste vácuo. É uma equação de violência simbólica – e política – que não solucionamos há 12 anos. Aí sim testemunhamos um estupro que permanece impune.

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