O vício que alivia


Quando comprou o apartamento, ela estava casada. Quando se mudou para o dois quartos, sala, cozinha e banheiro, Silvia imaginou que viveria no paraíso. Poderia morar ali por anos, mas o divórcio a colocou no purgatório. Dois anos depois, a inauguração do shopping a enviou ao céu sem escalas.

Sem marido e sem cronograma de trabalho de Amélia, Silvia se entregou à fé. Na religião do consumo, a igreja era o shopping center, com a vantagem de poder orar quando quisesse. E ela virara beata, pois se ajoelhava aos desejos todos os dias.

Se estava cansada, pagava aquelas massagens rápidas. Relaxamento em 15 minutos. Quando se sentia angustiada ou brigava com o novo namorado, afogava as mágoas e se levantava na loja de cosméticos. Se a melancolia ameaçava se transformar em quadro depressivo, Silvia corria para a praça de alimentação, onde um disque-entulho no formato comida resolvia a lacuna no peito com discurso robótico e sem espera.

Ela se viciou no shopping center. E, como todo viciado, insistia em negar o comportamento repetitivo ao abrir o leque de desculpas e mecanismos de defesa. Era como se procurasse e folheasse as páginas do dicionário de adjetivos. Todos positivos, é claro.

O templo merecia sua presença diariamente, por razões variadas. Não tinha carro, mas elogiava o estacionamento. Nunca fora assaltada, e a segurança dos homens de preto perpetuava a virgindade criminal. Reclamava das dores nas costas e irritava-se se alguma amiga lembrava das cadeiras duras da praça de alimentação, onde permanecia por horas, como se cumprisse expediente.

A filosofia de vida balançou na quarta-feira, exatamente às cinco da tarde. As dúvidas se manifestaram, de início, como uma pontada no abdômen. Para Silvia, não havia simbolismo na relutância. A pontada se transformou em pequenas dores.

Ela resolveu ignorar o próprio corpo. Nada que a impedisse de percorrer os corredores novamente atrás daquela oferta de sapato alto. Havia deixado a inspeção para depois e temia que o desconto desaparecesse com o estoque. A experiência de quilômetros percorridos naquele piso brilhante lhe dizia que a concorrência feminina era acirrada, eficiente e veloz na proporção do estouro do cartão de crédito, o terceiro a ser invalidado este mês.

Caminhou mais cinco minutos e os avisos reapareceram. Mais duas pontadas. Fingiu não ouvir o recado e seguiu ao terceiro piso. Não poderia se enganar sobre a próxima compra. O sapato era a arma para alcançar os holofotes no chá de bebê dali a três dias. Salto alto à tarde? Para ela, vaidade estava acima de hora, lugar e grau de amizade ou parentesco.

Ao entrar na loja, o corpo acenava, gritava, esperneava. Silvia não podia ignorar a si mesma. Precisava deixar o sapato para outra hora. O vexame passou a ser uma hipótese. Diante da encruzilhada, decidiu que adiaria a aquisição que engordará o andar térreo do armário de seis portas, ainda sob financiamento na maior loja do mesmo endereço.

Poderia resolver o desconforto se descesse um lance de escadas ou se relaxasse nas escadas rolantes. Rapidamente, estaria na sala onde haveria alguma privacidade. Isolamento, jamais. Mas tudo era uma questão de princípios. Princípios orgânicos. O shopping precisava compreender que não se tratava de rejeição pessoal. Eram valores nascidos antes do próprio centro de compras, derivações do divórcio que a machucara.

Silvia acreditava que o shopping havia curado todas as feridas e sequelas da perda de Augusto. As pontadas desmentiam as teorias, ressuscitavam a neurose. Enquanto andava para fora do templo, demolia a fé cega. Sentia-se apavorada, em parte por vergonha de si mesma, em parte pelo pavor da possibilidade de ficar enterrada em casa outra vez.

A única saída foi acelerar o passo. Não prestou atenção no aceno de Amadeu, o segurança da tarde. Quase atropelou a dona Inácia, uma das últimas vendedoras de quebra-queixo da cidade e proprietária informal de ponto na frente do shopping.

Nunca percorreu tão rapidamente as duas quadras que separam a vida real do paraíso do consumo. Pegou a chave durante o trajeto, e ficou feliz quando acertou o buraco da fechadura de primeira. Entrou no prédio e depois seria acusada de grosseira por não dar boa-tarde à vizinha do 12, sempre fofoqueira, mestre na cara fechada a qualquer hora do dia.

Silvia subiu os três andares saltando de dois em dois degraus. Entrou em casa suando em bicas. Não deu para trancar a porta. Era o momento de enterrar a paranoia da violência urbana. Mais cinco metros para matar as dores insistentes.

Jogou as roupas pelo caminho, como na primeira noite com o novo namorado, relegado a segundo plano. Na verdade, nem na fila de assuntos a resolver o sujeito apareceria no final daquela tarde. Ele não valia os vícios.

Silvia virou no segundo cômodo à direita, sem olhar. Mecanicamente, se sentou e respirou fundo. O alívio veio em 30 segundos, com a mesma dimensão do barulho que apenas ela ouvia. O trabalho interno representava um dogma para ela. Verdade incontestável que valia até presidência de comunidade em rede social. A certeza que defendia em debates sobre a importância da privacidade para certos atos.

Aliviada, ela se vestiu com rapidez e andou em marcha de volta ao templo. Dois andares de escada rolante e a oferta do dia ao alcance do cartão de crédito. Na porta da loja, não encontrou o cartaz que anunciava a promoção. Perdera o fetiche que ainda não pertencia a ela?

Silvia ficou tensa e desconfiada. Sentia o cheiro da derrota. O olhar da vendedora indicava o peso do fracasso. Desistiu de entrar, discutir e reclamar. Amanhã, haveria outra promoção. Se não fosse ali, o milagre aconteceria em outras bandas, dentro do mesmo prédio.

Naquele instante, a ideia de um novo creme abafaria a decepção. Amanhã, retornaria ao mesmo endereço. Só que em horário diferente. Não queria correr o risco de o relógio biológico sobrepor vícios. Trabalharia em casa depois do almoço para manter a fé inabalável pelo resto da tarde.
Obs.: Este texto ficcional foi publicado, originalmente, no site Jornalirismo.

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