Meninos quietos (Contracapa # 15)

Oásis na floresta de concreto e ferro, o Jardim Botânico Chico Mendes é o lugar ideal para conversar com a arte-educadora Selma Maria. Ambos transmitem paz de espírito, são introspectivos e adeptos do silêncio como resistência à velocidade do mundo moderno.

Selma e o Jardim Botânico haviam acabado de se ver, quando sentamos em um dos bancos de madeira, em meio às árvores, para conversar. Seria exagero – e certa cafonice – afirmar que houve amor à primeira vista entre a educadora e o espaço onde trabalharia naquela tarde nublada e fria, mas apostaria na identificação mútua a partir do olhar contemplativo e da busca pela quietude para a reflexão sobre os seres, vivos ou não, que os cercam.

Selma tem 45 anos e três filhos. É, acima de tudo, uma menina quieta. Vive para brincar. Vive de brincar. Não compra seus brinquedos. Prefere fazê-los. Poucas vezes sozinha. No Jardim Botânico, montou cata-ventos de papelão e espeto de madeira (aqueles de churrasco) com 20 pessoas, crianças de sete a 85 anos.


Quando compra brinquedos, Selma Maria vai buscá-los longe. Não se incomoda em viajar mil quilômetros. Perdeu as contas de quantas vezes foi para a estrada, até o sertão de Minas Gerais, para seguir os rastros das palavras de Guimarães Rosa.

No sertão, a compra de um brinquedo é negócio único. Único exemplar. Único vendedor. Horas de boa conversa, que podem estar acompanhadas de comida e muitas testemunhas, todas dispostas a dividir as histórias vividas e contadas por um dos maiores escritores brasileiros.

As andanças de Selma Maria a tornaram conhecida. Trouxe mais de 200 brinquedos para a vida urbana, virtual e eletrônica das crianças. As viagens resultaram em exposição e livros publicados. Um deles se chama “Um Pequeno Tratado de Brinquedos para Meninos Quietos”, conjunto de prosa e poesia sobre os brinquedos feitos à mão, com o que estiver disponível.

Selma Maria foi ao Jardim Botânico, lugar desconhecido, para despertar nas crianças – esqueça a faixa etária, leitor – a chance de manter contato com elas mesmas. Com voz serena e firmeza nos argumentos, Selma defende que o faz-de-conta nunca se perde, até porque o adulto o cultua, sem perceber.

Construir o próprio brinquedo, para quem convive com crianças, além de estudar a cultura delas, é a reação à “gororoba” de informações disponíveis no mundo eletrônico. O computador não se constitui no inimigo, e sim o que fazemos com ele, traduzido na falta de convite dos adultos para conhecer o mundo que ultrapassa os muros do universo eletrônico.

— Qual criança trocaria um passeio por horas na frente da TV? O corpo dela é um brinquedo. O que fazer com esta explosão de energia?


Selma Maria levou tão a sério a relação com os brinquedos artesanais e as histórias por trás de cada peça que passará a viver com eles. A arte-educadora alterou a própria casa em Cotia, uma série de cômodos em formato de iglu (obra do sogro “professor Pardal”), para abrigar brinquedos.

Ao se levantar do banco de madeira, ela indicava o Jardim Botânico como metáfora da relação entre crianças e brinquedos. “A vida é a mistura. As puras misturas.” Metáfora confirmada nos olhos brilhantes e nas vozes sem fôlego das crianças que retornavam das alamedas do parque. Nas mãos delas, gravetos, folhas e objetos de plástico, talvez lixo para os cegos da infância adormecida. Em dez minutos, a metamorfose em bonecas e soldados e a quietude da viagem para dentro de si, em meninos e meninas.

Obs.: Veja um vídeo com a arte-educadora Selma Maria. 

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