A santa está presa

 
A rua Santa Catarina, no José Menino, sempre foi famosa pelas pensões. No século passado, carregava a fama de reduto dos farofeiros. No politicamente correto, os turistas de um dia que, com seus ônibus, lotavam várias vias em torno do Orquidário Municipal antes de ver o mar.

Hoje, a rua traz nas costas um fardo involuntário e mais doloroso. A Santa Catarina divide com a gruta de Nossa Senhora de Lourdes um ponto de consumo de crack. Durante o dia, o movimento de usuários é mais discreto. É possível visitar a gruta, ainda que com relativo temor.

Quando anoitece, a gruta é trancafiada. Uma grade tenta separar a imagem de Nossa Senhora de Lourdes de um dos mais graves problemas sociais de Santos. Todos os dias, de 30 a 40 pessoas se reúnem para consumir crack e dividir o sofrimento provocado pelo que se acreditava ser a droga mais devastadora dos centros urbanos. O vício em oito segundos.

O purgatório sempre tende a se transformar em inferno. Duas novas (velhas) versões do crack, o Hulk (pedra de cor verde) e o Capitão América (rosa), já circulam na Baixada Santista. O óxi, uma versão mais poderosa, também já foi apreendido por aqui. Mais de 50 kg, segundo reportagem do jornal A Folha de S.Paulo.

O óxi possui querosene e – em outra variedade – gasolina na composição, além do coquetel de substâncias presentes no crack. O efeito ainda não pode ser mensurado, mas se imagina o estrago no organismo. Na cracolândia, em São Paulo, um usuário disse ter perdido 15 quilos em um mês.

A concentração de usuários na rua Santa Catarina é um cenário conhecido por todos. O problema reside na forma como se trata a questão. O Estado insiste em confundir – por conveniência? – tráfico com consumo. O traficante é caso de polícia. O usuário, de saúde pública.

A permanência das pessoas no local indica a esterilidade das ações públicas. Não basta retirar os viciados da rua Santa Catarina. Serão colocados aonde? Sem mencionar a violência física eventual, até porque “homens da lei” não pedem por favor, caro cidadão. É redundante dizer que, cientes dos riscos e reféns da droga, os usuários retornam ao José Menino no dia seguinte.

Separar quatro leitos, no Hospital da Zona Noroeste, como anunciou a Prefeitura para o próximo semestre, é esconder o esqueleto no armário. O número de vítimas é muito maior. Internar sem tratamento de longo prazo pode adiar a retomada do vício ou somente esconder o “desvio” dos olhos de todos.

Quando se confunde segurança com saúde pública, fica cristalina a perspectiva – com a concordância de parte da sociedade – de que os usuários de crack são responsáveis por tudo o que fazem. Não necessariamente! É uma doença não apenas biológica, mas também social, que altera valores e comportamentos individuais. Os mais radicais, no alto da ignorância, creditam ao viciado a consciência voluntária do vício. Estar lá, na sarjeta, nesta visão, seria um desejo, uma vontade, quase um prazer.  
As duas santas não dão conta de proteger o cenário em que vivem hoje. Não há milagre, promessa ou oração capaz de modificar a vida dos usuários. É uma questão de fé, mas na decência de quem gerencia a cidade, pessoas que insistem em combater um doença terminal com os remédios errados. Em doses exageradas, o medicamento é o veneno que eleva a dor, quando não provoca a morte, sem poesia, crua e anônima. 

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