O
medo não era compatível com o ambiente. Ela paralisava em lugares onde a
alegria deve ser o sentimento cartão de visita. Sorria forçado, inventava
histórias, arranjava um jeito de ir embora para casa mais cedo. Às vezes, ir
para casa elevava o grau de tortura. Aumentava o pânico porque ela pensava
nele. Construía a imagem dele pelos movimentos, roupas, frases de efeito, reação
da plateia.
Maria
é o nome fictício da paciente. Merece que a identidade seja preservada por
temer a exclusão social e o preconceito, principalmente da família e dos
amigos. Seria o medo ao quadrado, de quem detesta a solidão por temer alguém
que a maioria adora, ou pelo menos se diverte com ele.
Depois
de seis meses de terapia às escondidas, Maria se convenceu de que o medo dele
nascera na infância. As mãos suavam a cada festinha de primos e amigos de
escola. As pernas tremiam. O desmaio viria antes dos parabéns. Lembra-se de
chorar e ouvir da mãe:
—
Isso é frescura! Pode voltar para a roda com seus colegas! O que eles vão
pensar de você?
Maria
acreditava, pelas gargalhadas, que todos estavam entretidos demais para prestar
atenção nela. Para evitar contato visual com o problema, antecipava-se nas
desculpas para faltar nas festas. Um dia, a dor de cabeça. No mês seguinte, uma
dor de barriga no dia do aniversário da prima e melhor amiga. Preferia a
vergonha a se borrar de medo, o que poderia acontecer se estivesse lá.
Descoberta
a causa, restava entender a evolução da doença. Ela entendia assim, uma
enfermidade, ainda que o terapeuta negasse a patologia. Estar doente
significava o modo de entender que o medo residia em um endereço além do seu
alcance, incontrolável para sua vitalidade.
A
adolescência confirmava o quadro de anormalidade, na cabeça dela. Paulo, o
namorado, idolatrava filmes de terror, mesmo com a decadência do gênero em
plenos anos 90. Ela achava bobagem de gente imatura, mas tolerava a matança
para segurar o sujeito. A contrapartida eram as comédias românticas, que ele
fazia questão de chamar de filmes mela-cueca.
Maria
suportava machadadas, pescoços cortados, tiroteios, facadas, cadáveres de toda
ordem. Até a série de documentários Faces da Morte ela assistiu (e reviu) sem
reclamar. O namoro entrou em crise (e terminou) quando a convidou para ver o
novo filme de terror da locadora, mais uma fita B baseada em obra de Stephen
King.
O
assassino vinha do além e executava crianças, dizia a sinopse da caixa. Nada
seria mais clichê. O terror se materializou quando o assassino apareceu na
tela. A fantasia era idêntica àquelas que a horrorizavam na infância, em
gênero, número de sapatos e grau de violência do riso.
Não
conseguiu se explicar para o namorado. Mais um episódio para o arquivo das
esquisitices dela. Paulo não compreendia porque Maria não entrava na mais
famosa rede de fast-food. O homem na porta, simpático e imóvel, a impedia de
comer o sanduíche, o pacote de batatas fritas e tomar um refrigerante. Só se
comesse na rua. O namorado creditava a resistência ao regime constante, que
acompanham as mulheres como uma relação umbilical.
O namorado brincava que ela não teve
infância por desconhecer certas lembranças da programação infantil de TV. Vovó
Mafalda, Papai Papudo, quem eram estes? Ela aturava as palhaçadas de Paulo. Mas
preferiu acabar o namoro a se explicar. Saiu correndo da casa dele naquele dia
e terminou pelo telefone. Melhor a fama de má do que viver o medo.
Agora, na fronteira dos 30 anos, precisava
resolver o problema. Discordava do terapeuta. Estava doente. Nada duraria tanto
tempo, com tanta profundidade. Nem aquele monstro de sorriso aberto e kit de
tortura que terceirizava risadas.
Maria foi para a Internet. Ali, achou o
caminho. Não a cura, mas a saída para confrontar a fobia e seu agressor desconhecido.
No Orkut, viu que não estava sozinha. Uma comunidade com 300 membros a esperava
para compartilhar experiências, realimentar o medo, crucificar o mal em forma
de roupas coloridas.
Maria adorou a palavra, que resumia parte
de sua vida: coulrofobia. O medo de palhaço virou camiseta, tema de blog,
campanha de conscientização. O desejo, agora, é criar um comando de caça aos
narizes vermelhos. Maria seria a mentora intelectual. O argumento de que os
palhaços – palavra que se recusa a pronunciar – são tristes por trás do sorriso
espontâneo não alterou os planos de extermínio.
Gargalhou pela primeira vez, com as
fantasias homicidas. Nunca mais voltou ao terapeuta. Nunca mais foi às festas
infantis. Chegar perto de um deles, jamais!
Obs.: Este texto foi publicado, originalmente, no site Jornalirismo.
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