A confiança como dogma

 
Sempre me julguei um sujeito desconfiado, fruto da construção do jornalista que se deu em mim. Percebi que estava, em parte, errado. Desconsiderei – como o espeto de pau na casa do ferreiro – que o paradoxo habita qualquer pessoa e, é por ele, que nos tornamos interessantes, profundos e que devemos correr da vida com seus sentimentos lineares.

A estrada faz a viagem mais aventureira quando tortuosa. O caminho das pedras, quando reto, produz imagem padrão, que aborrece e me deixa sonolento. Pensar com um pouco mais de clareza e serenidade derrubou a fragilidade do argumento absoluto. Plantou dúvidas. Contaminou-me com incertezas.

Aprender a refletir sobre si é tão assustador quanto libertador, como a clareira que se abre depois de horas na mata fechada. Permaneço desconfiado, mas diante daqueles que ocupam o poder. Este ensinamento jornalístico calcificou como ferida curada, como marcas na jornada da contradição.

A quebra de outros eixos supostamente dogmáticos me fez avaliar o quanto a confiança pode ser a chave para algemas que paralisam e repulsam  relacionamentos e novas experiências. Confiar no outro implica se expor pelas janelas das emoções, entender que relações humanas representam um darwinismo sentimental, no qual prevalece a capacidade de adaptação ao outro para evolução e sobrevivência de ambos como um só espécime.

Compreendi que exercitava a confiança sem notar a prática por ela mesma. Segurei-me na teoria como saída sem sentir como estava obsoleta. A confiança nasce e se multiplica como ponto natural quando outra pessoa se refaz a cada encontro pela afetividade. Gostar do outro é, definitivamente, confiar nele. E gostar dele não é idolatrá-lo.

Acreditar em alguém não implica em vê-lo como um dogma. Crer numa pessoa jamais pode significar segui-la sem reflexão, sem um olhar cuidadoso. Nunca confio às cegas. Ou passei a lutar contra isso, ainda que de vez em quando caia no auto-engano.

Também não me vanglorio de confiar desconfiando. O outro é passível de erros, falhas, deslizes voluntários ou não. Se o entendermos por esse caminho, se torna menos doloroso o contato com aqueles que se agarram em princípios como valores inquestionáveis.

Os adeptos de códigos rígidos de conduta não costumam enxergar os motivos para as regras estabelecidas. Apenas as cumprem, num processo de esquecimento que apaga o porquê da criação delas. As regras também ganham o status de dogmas. “Sempre fui assim.” “Sou assim com todas as pessoas.” As desculpas freqüentes para a rigidez habitam os outros até porque podem machucar na frente do espelho.

Confiar em alguém resulta em flexibilizar normas, enterrar valores secundários, simplesmente perdoar para continuar. A ausência de perdão indica o quanto quem confia, na verdade, sempre desconfia.

A eterna desconfiança, na afetividade, aponta o que podem ser os sintomas mais melancólicos que cicatrizaram no homem-linear. O primeiro resulta na dificuldade de enxergar quem anda ao lado. A linearidade da resposta única, a tal desconfiança, gera a cegueira que o impede de compartilhar o essencial com outra pessoa, de construir sonhos e desejos em comum.

A desconfiança eterna também conduz a um beco sem saída: a necessidade quase obsessiva de ler alguém como se fosse (ou como devesse ser) a imagem e semelhança de si mesmo. Não há reações distintas. Não podem brotar diferenças. Não podem existir respostas múltiplas para uma única questão.  

Precisei reconhecer e confessar minhas próprias contradições para visualizar e injetar em mim a ideia de que confiança e desconfiança pertencem à mesma mãe. E que nasceram juntas, em tempo único. Confiar e desconfiar, numa dança em que este dois parceiros se revezam sem interrupções, é valorizar o que há de melhor no outro e ter consciência de que ele pode me modificar. 

A mudança é inevitável. A metamorfose fica mais saudável se eu a percebo durante a transição, interminável, contínua e dependente de outros, além dos meus princípios e valores que, se não tomar precauções, me paralisam e me cegam diante do novo, diante do horizonte inédito a cada encontro. 

Comentários

Lilian disse…
Marcão como sempre de uma sensibilidade impar... Parabéns!
Anônimo disse…
Há tempo não te via escrever assim. A linha tênue que separa princípios de dogmas costuma ser facilmente cruzada por nós, é um exercício constante e fundamental tentar percebe-la.

Perdoar para continuar é necessário...
Brilho eterno de uma mente sem lembranças.

Esquecer é impossível.
Beth Soares disse…
Um texto extremamente profundo. "A confiança nasce e se multiplica como ponto natural quando outra pessoa se refaz a cada encontro pela afetividade."
O melhor é que a construção de nós mesmos não termina nunca. E o amor nos faz ver que este caminho tortuoso, cheio de medos e incertezas é incrivelmente prazeroso e estimulante. Estímulo e prazer que só existem justamente porque esta trilha não é linear.
Impossível não refletir sobre nossas vidas, ao ler este texto.

Parabéns, mais uma vez.
E obrigada.

Um beijo.