Ressuscitei como ciclista há
seis meses, depois de uma hibernação que durou 18 anos. Durante quase o tempo,
era um urso de quatro rodas, como dono ou como carona. Com a bicicleta, as
pernas foram as primeiras partes do corpo a recuperar os movimentos.
Antes,
os exercícios mecânicos se limitavam ao balanço dos pés nos três pedais e ao
exaustivo molejo do punho direito na troca de marchas, enquanto o braço esquerdo
seguia paralisado ao volante.
Imaginava que o principal problema seria montar o novo
(velho) animal. Mas a sabedoria do ditado popular pulverizou minha dúvida em cinco
segundos – e uma pedalada embriagada – no estacionamento da loja esportiva. Andar
de bicicleta, você nunca desaprende. Se perdeu o jeito, peça ajuda ao
profissional mais próximo porque o tempo das rodinhas passou para você.
Caso
caísse na primeira tentativa, o horário noturno, de dia útil, me salvaria do
vexame. Como a loja estava quase fechada, a platéia seria de duas testemunhas,
ambas sem chance de postar a vergonha em redes sociais. Seria o dito pelo
duvidoso.
As boas-vindas ou o batismo na selva aconteceram no
primeiro dia de ciclovia. Percebi que precisava enxergar diferente minha nova
relação com o sistema de transporte. Não tinha mais quatro rodas. Era um ciborg
de duas com aro 26, mais o motor de duas pernas – que não davam um cavalo – de
potência.
A perspectiva mudou, mas a selva permanecia preservada. Intacta.
Rapidamente entendi que nem os roteiristas de videogame seriam tão imaginativos
assim. A ciclovia representava a versão sem cortes de um jogo. As diferenças entre
o virtual e o real residiam na ausência de bônus por avançar de fase, de vidas
extras e na impossibilidade de ganhar pontos com a eliminação dos adversários. Todos
valeriam a mesma pontuação, sejam velhinhas, crianças ou outros ciclistas: de
12 a 30 anos de cadeia.
A ciclovia, de fato, reproduzia a genética das vias ao
lado dela. Motoristas de ônibus não respeitam motoristas de carros, que odeiam
motociclistas, que desprezam ciclistas, que ignoram pedestres. Todos culpam a
todos e se sentam no confortável banco das vítimas para se eximir de
responsabilidades ou eventuais falhas.
Mais do que pedalar contra o vento, em dia de frio,
embaixo de chuva, ser ciclista é compreender que não nasceu para o trânsito. Pedalar
é ser uma aberração no tráfego, pela mentalidade atual. Uma mancha na pintura,
sem chance de integração e contaminado pelos mesmos erros daqueles que tanto
critica ou quando simplesmente se lembra da mãe deles.
Em
Santos, cidade onde moro, andar de bicicleta significa percorrer ciclovias que
te levam de lugar algum para um ponto desconhecido. A ciclovia te arremessa,
inevitavelmente, no tráfego. Estas vias, tão imperfeitas como remendadas, não
levam os ciclistas ao local de trabalho. Começam numa parte do caminho e
terminam no caminho incompleto.
Andar de bicicleta é uma aula de antropologia urbana a
céu aberto. Permite conhecer tipos desconhecidos por quem era motorista. Como
outra espécie da fauna, os motoristas costumam acreditar que ciclistas são como
a velha piada dos japoneses: todos iguais para atrapalhar a vida alheia.
Pedalando, você encontra o piloto, aquele que confunde ciclovia
com pista de corrida. Ele vive com pressa pelo prazer de ultrapassar os
concorrentes de olho no pódio imaginário.
O
ciclista comum – rótulo em que me enquadro, sem falsa modéstia – convive também
com a tartaruga, o colega que desfila em sua velha bicicleta, sem a menor
chance de vencer a lebre numa fábula de vida real. Ele adora aparecer nos
horários de pico, para irritar quem vai ou volta do trabalho.
Mas o maior oponente não pedala nem corre. Aqui aflora o
corporativismo da bancada da bicicleta. O adversário é o pedestre, que ignora a
sinalização e atravessa a ciclovia na fé cega de que o ciclista vai brecar.
Apenas se esquece que, hoje, o cotidiano do trânsito sobrevive além da pureza
das campanhas que defendem a cortesia.
Infelizmente,
freios em bicicletas costumam ser acessórios do passado. O freio tende a ser orgânico,
ambientalmente incorreto, protegido por tênis ou chinelo de dedo.
Os pedestres que passeiam como cachorros representam uma
mutação genética da espécie. Diante deles, os ciclistas duvidam, por dois
segundos, se não poderiam pontuar no videogame, antes de lembrarem que – na teoria
– são civilizados.
Os
pedestres também atravessam a via sob crença transcendental de que alguém no
além os protegerá, mas entregam a própria mentira pela atitude inconsciente. No
fundo, sabem do risco, até porque colocam o coitado do cachorro na frente na
ciclovia, jamais ao lado. Arriscar o pescoço do outro remete aos freios duvidosos.
Ciclista que se preze não atinge aqueles que mal sabem onde estão.
A selvageria do trânsito, com as buzinas, gritos e
palavrões patológicos, me fazia temer os pedestres quando pedalo. E evitar os
motoristas pelos mesmos sintomas. Mas o sintoma de rejeição ao pedestre sumiu
recentemente. A medicação consiste em
andar a pé. O problema é que, ao apanhar a bicicleta, o antídoto renasce como
veneno, na versão moderna do médico e o monstro. O pedestre volta a ser o alvo
do videogame doentio e contraditório.
Nas várias personalidades que ocupam o mesmo corpo, minha única certeza é que ser ciclista reorganiza os pensamentos e me apresenta novamente para a cidade onde moro. Como dificuldade maior, a barriga obesa, alvo original da compra da bicicleta, que não desapareceu. A culpada deve ser a magrela.
Comentários
Viva Santos, fazendo de tudo para o bem do esporte... inclusive os radicais.
Será emoção pura.
Espero apenas que tenham uma ambulância a cada quadra esperando uma vítima de queda da ciclovia para a avenida seguida de atropelamento.
Lamentávell! Nossos engenheiros não sao mais os mesmos.
Sei...
Beijos