O atirador desconhecido


O atirador de Realengo, no Rio de Janeiro, provocou uma necessidade inerente à comoção com os assassinatos. Entender o mal e a possível insanidade do agressor se torna obsessão, para que o conforto das respostas nos posicione diante da tragédia. Explicar, neste momento, se constitui em um beco sem saída. Não há como descobrir, por completo, as motivações e o passado do atirador. Rascunhar um desenho psicológico do agressor é o máximo a ser feito. Nada além de arranhar a superfície, com a consciência de que uma resposta satisfatória permanecerá longe do ideal.

Os acontecimentos violentos abrem margem para outra doença social contemporânea: a indústria das especulações. Esta enfermidade se manifesta em quatro passos: 1) fornecer combustível à história. Qualquer elemento periférico vale como foco; 2) gerar novos capítulos a partir destas informações; 3) elevar a dramaticidade (como se o fato em si não fosse dramático o suficiente) e 4) transformar o conjunto da obra numa novela em horário nobre.

Um dos sintomas que permeiam massacres, por exemplo, são os clichês hollywoodianos. Tenta-se, de forma apressada e desencontrada, justificar e diagnosticar o agressor, mesmo que à distância. Qualquer característica comum, em princípio, se torna um traço para compor o perfil do “monstro”.

Menos de 24 horas depois dos assassinatos, era possível ler e ver várias explicações sobre a vida pessoal do atirador. Uma delas remetia à quantidade de horas que ele passava no computador. Jovens urbanos ficam horas na Internet e não é por isso que resolvem executar adolescentes nas escolas. Outra justificativa envolvia o suposto comportamento introvertido do rapaz em sala de aula, anos antes do crime. Alunos quietos e, por vezes, isolados se encaixam no perfil do matador em potencial?

As perguntas mal formuladas conduzem, evidentemente, às respostas rasas. O caso é único, assim como todos os demais que exigem uma avaliação psicológica. A estupidez se traduz por enquadrar o assassino de uma dúzia de pessoas em um manual de roteiro para seriados de TV ou como se a ação dele pudesse ser tão previsível como uma receita de bolo.

O estigma também se estende à religião. A tarefa se simplifica quando se reforçam, sem intervalos, os rótulos sobre aquilo que se desconhece. A ligação com o Islamismo pesa no perfil do atirador. Só falta dizer que ele agiu sob influência de Osama Bin Laden para completar o pacote delirante.

A superficialidade das reflexões não é o que mais me assusta. A perversidade social também reside nos efeitos dela. Quando mais se especula sobre as motivações do atirador, atende-se ao que ele, provavelmente, mais desejava: a eternidade, um lugar na prateleira da História. A publicação da carta é um exemplo do espetáculo em curso.

O mal, nesta lógica, é alçado à condição de monumento, idolatrado por fãs que transformam crimes em entretenimento de final de semana. O atirador foi presenteado com perfis em redes sociais como o Twitter e comunidades no Orkut. Por que memoriais virtuais para conduzir a violência ao glamour? Por que mostrar o corpo dele na TV? Por que expor crianças, que viveram a pior experiência da história delas, a uma bateria de perguntas?  

O distanciamento do calor dos fatos ainda é a melhor arma para se chegar a um olhar mais profundo sobre o caso. É preciso rejeitar e ignorar também as declarações padronizadas de psicólogos e psiquiatras que encaixam qualquer história em suas teorias de boteco, loucos a sorrir diante das câmeras de TV.

O atirador não será, aqui, identificado. Lembrar o nome, como elemento básico da identidade humana, o glorificaria. O anonimato dele é o antídoto contra seus desejos de fama. Mas o assassino não deve ser esquecido. Deve ser estudado para que se melhore a capacidade de análise comportamental.

O atirador já entrou, por ironia, para a História, mesmo que pela porta dos fundos. As vítimas, infelizmente, terão que esperar do lado de fora, enquanto a memória coletiva se encarrega de apagar seus nomes.   

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