Gilberto Mendes é um homem abençoado. Jamais diria que o talento dele se deve à obra divina, até porque concordo com a visão do próprio maestro, de que arte carrega consigo trabalho e certa dose de disciplina. Ele obteve, ao contrário de outros artistas também diferenciados, respeito, admiração, reconhecimento e homenagens em vida.
A ironia é que a fama precede o homem e sua obra. É de bom tom cultuar o maestro. Dá status posar para as câmeras ao lado dele. Mas a grosseria é inversamente proporcional quando se ignoram suas músicas e seus escritos. Falar com Gilberto em público, tudo bem. Ouvir o que ele tem a dizer, não necessariamente.
Talvez Gilberto Mendes esteja acostumado. Nada diferente do relacionamento com políticos, que viraram as costas várias vezes para o Festival de Música Nova, como se produção artística se limitasse às prateleiras de supermercado. Um ex-prefeito teria dito que era mais vantajoso investir em música sertaneja, como se o maestro não pudesse coexistir com Chitãozinho e Xororó no mesmo universo cultural e geográfico.
Conversei com Gilberto somente uma vez. Na verdade, foi uma entrevista por causa da morte de Tom Jobim. A proposta era ouvir músicos importantes, que pudessem aprofundar as contribuições do colega carioca.
Gilberto Mendes me recebeu em sua casa, no meio da tarde. Como jornalista em início de carreira, reconheço que não havia desenhado a dimensão exata do interlocutor. Mal o conhecia, mas estava disposto a ouvi-lo, com o respeito que qualquer entrevistado merece.
A obviedade de hoje me impressionou naquelas circunstâncias. O maestro falava com propriedade, sem afetação. A serenidade das palavras indicava a sapiência de quem é capaz de duvidar de si mesmo. Ele jamais defendeu a erudição como meio de separar ou excluir, marca de muitos intelectuais afogados na própria presunção.
Tornei-me admirador de seu pensamento cultural, mais do que fingir idolatrar sua música. Prefiro ler seus textos, consciente de que o olhar transparece e atravessa as partituras. Talvez isso ocorra por ignorância minha ou por preferência pessoal, o que não me soa pertinente investigar agora.
A admiração transformou-se em distanciamento. Esta metamorfose me levou ao silêncio e à observação. Já encontrei com Gilberto Mendes em livrarias, teatros, exposições e cinemas. Encontrar tem pitada de exagero, pois nunca me apresentei ou tive intenção de me aproximar com conversas de antesala. Dialogo com o maestro pela palavras dele, pelos ensinamentos impressos de quem compartilha a relação visceral com a arte e com a cultura.
Vi o maestro pela última vez há um mês e meio, na Pinacoteca Benedito Calixto, em Santos. Gilberto sentou na primeira fila para ouvir o médico e escritor Edson Amâncio. Fiquei em pé a maior parte do tempo na parede do fundo, distância mais do que segura para perpetuar o silêncio.
Quando pediu a palavra, o maestro jamais falou de si mesmo. Estava ali para debater e construir ideias, sem propagandear seus feitos como se subisse em um caixote em praça pública. Infelizmente, muitos não desejavam ouvi-lo, embriagados pelo som da própria voz, que expelia um clichê qualquer.
O maestro insistia que os artistas eram súditos da disciplina e do trabalho, mas – acima de tudo – se comportavam como observadores atentos do outro e dos detalhes do cenário. Sufocado por outras vozes, ele deu a impressão de que a saída era escutar aquele coro e encurtar os argumentos.
Decidi ir embora. A lição salvara aquela tarde irregular. Brotaram dúvidas. As perguntas se multiplicaram. A certeza é que continuarei com as leituras dos escritos de Gilberto Mendes, já que muitas respostas virão em doses homeopáticas nas páginas de jornal. Ou em um sábado na Pinacoteca.
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