O filho no purgatório


Localizado às margens da rodovia Rio-Santos, Caruara é um bairro com dois pais, o biológico e o de criação. Ambos têm sua importância, com papéis diferentes, mas se unem no desejo de controlar o filho ou, pelo menos, ficar com as glórias quando o garoto progride na vida. Nas crises, nenhum dos dois atende aos pedidos de socorro. Ou fingem responder aos gritos de ajuda.  

O pai biológico, nesta relação familiar conflituosa, é aquele que aparece de vez em quando, passa mão na cabeça do filho, tenta comprá-lo com um presente ou um sorriso para desaparecer por dias ou semanas. Este tipo de paternidade é exercida pela cidade de Santos, a quem o Caruara está vinculado em termos administrativos. É um cordão umbilical que abrange de recursos a políticas públicas.

O pai de criação tem menor aquisitivo, mas acompanha o dia-a-dia do filho em crise de identidade. Bertioga não é o pai ideal, daqueles que participam, como dizia o slogan da pomada para contusões musculares. É um parente para a solução da vida prática, de pequenos problemas.

Boa parte dos moradores de Caruara tem ligações afetivas e profissionais com Bertioga. O distrito de Vicente de Carvalho, em Guarujá, é o lugar mais próximo que chegam de Santos. Um braço de mar e um bom pedaço de terra separam Caruara da maior cidade da região, e não se trata de licença poética. Muitas crianças e até adultos nunca estiveram na cidade que veste a máscara de pai biológico.

Visito o Caruara com regularidade desde meados dos anos 90. O bairro tinha aquele charme que nos envia de pronto ao cenário idílico do interior. Pessoas sentadas nas calçadas no final de tarde para conversar sobre o próprio cotidiano. Crianças gravitavam em torno destas rodas de conversas com pipas, peões, bolinhas de gude e outros apetrechos em risco de extinção.

No Caruara, a escola era uma extensão da sala de muitas moradias. Professores e outros funcionários freqüentavam festas de aniversário, acompanhavam o crescimento das crianças e dividiam sentimentos e emoções com gente simples, a maioria migrante das regiões Norte e Nordeste.

O bairro também atraia famílias da “cidade grande”, que concretizavam o sonho de morar perto da natureza e abandonavam – fora do trabalho – a paranóia dos centros urbanos.

O filho cresceu, entrou na puberdade e tornou-se tão rebelde quanto o corpo em mutação adolescente. E sem pais para orientá-lo nesta fase insegura de metamorfose. A independência vira fardo quando se é imaturo, quando os pais não oferecem condições para que o filho ande com as próprias pernas.

A creche Noel Gomes Ferreira é um exemplo de como um pai biológico toca a campainha somente para cobrar seu filho. A creche foi inundada cinco vezes este ano. Em quatro ocasiões, as aulas foram suspensas. Por duas vezes, a água da chuva chegou a meio metro de altura. Geladeiras e outros equipamentos tiveram perda total.

A creche foi inaugurada há dois anos, de maneira provisória. A promessa seria construir outra unidade no terreno ao lado, que também pertence à Prefeitura de Santos. Até hoje, o terreno se parece mais com um laboratório de botânica a céu aberto do que com um rascunho de creche. E não há perspectiva de obras no horizonte.

Ser pai é também permitir que o filho desenhe o próprio trajeto. Ser pai é assumir a própria incompetência em conduzir a cria. É cortar grilhões e libertá-lo para crescer. Caruara foi amaldiçoado pela omissão, talvez por não render glórias ao pai. Nunca rendeu votos. Nunca definiu uma eleição.

O problema é saber se o pai de criação pretende, além de absorver a vida prática dos moradores, assumir o pagamento das contas do adolescente. Enquanto isso, o filho vivencia uma crise de identidade, como se estivesse no purgatório, em avaliação pelos pecados cometidos por quem o pariu.

Comentários

Cahe´s blog disse…
O grande pecado de Caruara: Nunca rendeu votos. Nunca definiu uma eleição.

Já que não dá para falar em emancipação política, é isso que, infelizmente, precisa mudar.

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