Os faxineiros que varrem mendigos

Em oito anos como professor, presenciei a cena por três vezes. Era uma aula sobre racismo no Brasil. Nas três ocasiões, alunos diferentes não duvidaram em falar: - Na favela, só tem bandidos.

Acredito que externaram seus preconceitos porque julgaram estar entre pares. Imaginavam que, por estar numa universidade, de maioria branca, poderiam falar qualquer coisa. O espírito de corpo garantiria a defesa deles.

O contrário aconteceu. Uma parte talvez pensasse o mesmo, mas se calou em prol do politicamente correto. Outra parte dos estudantes vinha de bairros de periferia, alguns deles de favelas. O fato é que o corpo cuidou do assunto por si só, sem a necessidade de uma intervenção direta. Apenas mediei o debate acalorado e contive os ânimos.

Lembrei-me deste exemplo para retomar o assunto da coluna passada (“Eu sou você amanhã”). Escrevi sobre o caso de um garoto de 14 anos que havia sido detido pela 17º vez em São Paulo. Os delitos variavam de furto à direção sem habilitação. Na hora de definir as responsabilidades, prevaleceu o tradicional jogo de empurra, em que figuram na lista de culpados os pais, promotores, juízes, a Fundação Casa e a entidade abstrata chamada sistema.

Mas o que me incomodou foi a reação – tão previsível quanto intolerante – de uma parcela de leitores na Internet e de apresentadores de TV. Todos seguiram pelo caminho mais fácil. Adotaram a rota que desemboca em um único responsável: o garoto.
 

É evidente que, aos 14 anos, o rapaz tem absoluta noção do que representam seus atos e as conseqüências deles. A questão é não essa. O problema maior reside no que o garoto poderá se transformar enquanto freqüentar as unidades da Fundação Casa, num entra-e-sai que dura três anos.

O moleque foi reduzido a um número para o sistema de segurança pública. E, quando o sujeito vira um número, começa o processo em que se tenta apagar, anular a identidade dele. O particular se dilui na totalidade, com o propósito de que esta totalidade se encaminhe para o absoluto. O menino cairia de joelhos diante do modelo em vigor.

Para um garoto de 14 anos, significa que crescem as chances de cometer delitos mais graves, por aprendizagem, sobrevivência ou pertencimento. Nesta idade, a influência do grupo compete, em vantagem, com as outras esferas da sociedade, como família, Igreja e escola.

A reação destes leitores jamais se aproximou da salvação ou recuperação do indivíduo. Ou avaliar se a mudança de vida é possível. A hipótese talvez não passe pela cabeça deles. A saída elementar, que mascara o preconceito, envolve culpar a sociedade, sem delimitá-la ou nomeá-la. Assim, a estrada mais serena é eliminar o número. Conduzir o infrator ao canto mais obscuro e invisível para todos. Uma jaula resume a história.

O mecanismo para enjaular é a limpeza social. Favelas, prisões, abrigos públicos, asilos e outros endereços concretizam a postura de descartar e/ou esconder o que, no entendimento dos “faxineiros”, não presta.


A turma da limpeza não participa efetivamente de ações sociais. Acalma a própria consciência ao ver o trabalho de organizações não-governamentais e grupos afins. O Estado é a mãe imprestável, que não os compreende, mas que deve ser permanecer viva para socorrer os filhos supostamente independentes. E estes filhos não toleram irmãos bastardos, marginalizados.

 
Os defensores da faxina se agarram no paternalismo, tanto dos programas sociais como dos seus próprios olhares. Ao mesmo tempo em que fingem acolher, os paternalistas reforçam a inferioridade do outro. Em muitos casos, visto como um bicho ou um selvagem a ser domesticado.

Na semana passada, três jovens foram detidos em Lindóia, interior de São Paulo, porque bateram e laçaram – seria gado? – um morador de rua. A vítima trabalhou no sítio de um dos agressores. Na delegacia, a desculpa temerosa dos superiores: - Era uma brincadeira!


O morador de rua, apavorado, deixou Lindóia. Ironicamente, os faxineiros cumpriram sua “função”: limparam a cidade.

Comentários

Lucas disse…
Além de varrerem, e ninguém perceber essa limpeza, eles destróiem mais ainda a esperança e a dignidade deles. E também me incomoda, ao ver que as pessoas que fazem isso recebem o apoio em vez de punição.Òtimo texto Professor.
Chris disse…
O que me incomoda é saber que muitos criticam, acham errado o ato, mas pouco fazem para mudar este quadro.
Belo texto. Uma ótima reflexão para a sociedade hipócrita que acha que um pedaço de pão resolve os problemas.

Beijinhos
Cahe´s blog disse…
Varrer para debaixo do tapete é muito mais fácil e não dá trabalho.
A dignidade começa a morrer quando o Estado distribui os cartões vagabundo: o homem tem de trabalhar e ganhar seu próprio sustento para, aí sim, ser alguém.
Hipocrisia política é um dos maiores males de nossa sociedade.
O povo há de saber votar para que possamos iniciar a faxina por cima.

Abraço,
Cahe is a Blogger