Uma escola possível

Da janela da sala de aula, as crianças se sentem dentro de um helicóptero imaginário. Quando viram a cabeça para a esquerda, enxergam o Porto de Santos. Quando mantém os olhos à frente, vêem a orla da praia. Um pouco à direita, a Ilha Porchat. Com uma dose de paciência, testemunham o voo das asas deltas e dos paragliders.

As crianças passam boa parte do dia no alto do Morro do José Menino, entretidas em inúmeras atividades na Unidade Municipal de Ensino (UME) Padre Lúcio Floro. A escola é uma das três que trabalham em regime de tempo integral. Mais do que depositar alunos dentro dos muros por todo o dia, a Padre Lúcio Floro faz educação com poesia, assim como o religioso que – com coerência – dá nome ao espaço. (In)felizmente, o lugar é a concretização mais próxima do modelo ideal de educação, com dinheiro público.

A escola existe desde 2008. Todas as áreas são acessíveis a pessoas com deficiência física. O piso é demarcado com referências em borracha para ajudar deficientes visuais. As salas possuem placas em braille, assim como o elevador, que atende os três andares do local.

O número de grades e portões é reduzido, o que ameniza o caráter prisional que a maioria dos colégios carrega nas costas. As cores, mesmo longe da vivacidade que brilharia nos olhos de uma criança, escapam ao padrão “azul-calcinha-de-velha”, marca da rede municipal que reforça o ar cadavérico das fachadas escolares.

As salas da educação infantil não têm carteiras. No início, a construção do espaço chocou professoras, acostumadas ao modelo repressor para crianças de 3 a 5 anos. A ausência de mesas e cadeiras aproxima os alunos e dá maior liberdade para que possam conviver numa relação mais coletiva.

No ensino fundamental, até o 5º ano, as salas têm capacidade para 25 alunos, um terço menor do que a média das classes inchadas, inclusive nas escolas privadas. Na aula de informática, as crianças têm à disposição um número de computadores – todos em LCD - quase para proporção de uma máquina por aluno. Há até uma sala específica para crianças com necessidades especiais.

Conheci a escola Padre Lúcio Floro há poucos dias. A visita aconteceu com certa desconfiança. Pensava que os relatos de uma escola possível eram exagerados. Ou um exercício de legislação em causa própria, tão comum quando se fala de educação. O mais do mesmo predomina em um universo onde um enfeite adicional é alardeado como a invenção da roda.

A escola Padre Lúcio Floro vestiu, de forma efetiva, o modelo construtivista, aclamado por nove em dez educadores, praticado por poucos beatos no deserto. O construtivismo funciona como uma espécie de oxigênio na educação: todos sabem que existe, mas ninguém o vê. No final das contas, prevalece o modelo tradicional de ensino mais a política de resultados e as obsessivas estatísticas que robotizam o estudante.

Em dois anos de existência, as sementes começaram a incomodar. Os casos positivos se multiplicaram. Alunos de 1º ano, por exemplo, produzem textos com coesão e coerência, fato raro na rede pública nesta fase de aprendizagem. Crianças da educação infantil constroem conhecimento de culinária ou aprendem noções de finanças por atividades lúdicas, dentro e fora da sala de aula.

Outro exemplo: uma aluna de nove anos ficou em 4º lugar em um concurso municipal de redação. A proposta era adaptar uma notícia de jornal para conto de fadas. Dois detalhes: 1) Beatriz, a aluna, era a única do sistema público; 2) ela era a única do 4º ano. Os demais estudavam a partir do 6º ano.

A prática pedagógica é rígida, não no sentido militar disciplinador, mas para adequar um discurso coerente com a teoria. Este discurso decorre do diálogo entre equipe pedagógica (detesto o termo gestora, uma herança corporativa) e professores. A escola faz valer a autonomia diante da Secretaria de Educação, o que facilita inclusive a aplicação de recursos que chegam diretamente do Governo Federal.

Por essas e outras particularidades, a escola Padre Lúcio Floro se fortificou como uma exceção no cenário carente da educação pública. E, infelizmente, expôs as contradições do próprio sistema. Feridas que gritam e sangram diante da mesma janela do helicóptero.

Logo abaixo, no mesmo bairro, a UME Irmão José Genésio, onde equipe e professores sofrem com as políticas públicas tão instáveis quando enfermas. Mais antiga, virou em dois anos o primo pobre do morro. O cartão postal às avessas de um governo que sabe como fazer, mas opta pelo piloto automático da inércia. A paralisia que impede a metamorfose da exceção em rotina, com vista natural e panorâmica, como a admirada pelas crianças do alto da montanha.

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