A religião, o futebol e os tabus

O templo ficava atrás de uma concessionária. Quando se busca a paz, o lugar não importa, até porque em ambos os endereços pagavam-se religiosamente todos os meses para viver o equilíbrio espiritual.

O culto era realizado aos sábados, sempre às dez da manhã, com sol, chuva, frio ou feriado. Eram cerca de 25 homens fiéis, todos frustrados de alguma forma porque não alcançaram os sonhos de criança.

Naquele espaço, uma vez por semana, alguns deles se aproximavam do paraíso. Outros pagavam seus pecados. Poucos atingiam o grau de redenção.

O paraíso tinha comprimento e altura. Cinco metros por dois, mais ou menos. Ali, uma vez por semana, eu era o Judas, o traidor, o milagreiro às avessas. Um goleiro, aquele sujeito nascido para matar a beleza da religião, impedir a comunhão do gol.

Como autor, dou-me o direito de ser parcial e filtrar os rumos da micro-história do templo verde sintético. Se tivesse que me confessar, diria apenas que sou um bom goleiro de time de bairro, o que me parece suficiente para um campo de futebol society. De bairro.

Um sábado transformou-se o ritual em tabu. Por circunstâncias de sorteio (na verdade, a escolha é autoritária a partir de qualidade técnica), eu e um amigo, volante nas horas vagas, sempre caiamos no mesmo time. Ele nunca era um dos primeiros a serem escolhidos. Também não era dos últimos, o que indicava o desempenho mediano ao olhar alheio.

A escolha era sábia: o volante carregava o piano à moda antiga. Pouca presença no ataque, vontade de vencer (o que significava dividir com/e os adversários), além de preparo físico invejável (qualidade em uma partida de barrigudos).

Pouco me lembro destes jogos. Era só a válvula de escape das pessoas comuns. Reconheço que guardei com mais clareza as conversas antes e depois das partidas. Diálogos sobre literatura, escritores, cinema e crônicas.

Cinco anos depois, o amigo-volante puxou papo sobre as missas aos sábados. Pensei que falaria sobre as conversas. Foi direto ao ponto: o dia que o céu fechou as portas para ele. O sábado em que quase fez um gol. Ele recitava o lance como o evangelho que escapa aos lábios de um narrador de rádio AM em tarde de clássico.

A narração era tão precisa, tão detalhada que me senti em um daqueles filmes do Canal 100. O volante desceu pela direita, livrou-se do zagueiro adversário em velocidade e disparou o chute. A bola seguiu rasteira, com endereço certo no canto esquerdo do goleiro. Não me lembro, mas ele me disse que espalmei por milagre. A bola foi para escanteio.

A história bastou para cicatrizar o tabu. Nunca tomei gols deste volante. Em cinco anos, apenas uma partida. Jogamos do mesmo lado, no mesmo campo atrás da concessionária, em Santos. Era um jogo amistoso entre o time do society, o Banguzinho, e um apanhado de escritores e jornalistas, que participavam de uma feira literária.

Como jornalista, engrossei o coro dos literatos pernas-de-pau. Como escritores mais tagarelam sobre futebol do que o colocam em prática, o volante se transformou em um aguerrido meia.

De nome José Roberto, o novo volante moderno, despediu-se do campo com honras, em seu último sábado. De sobrenome Torero, o volante de ligação manteve a virgindade, sofreu como um crucificado, mas resistiu à tentação de sacrificar seu próprio goleiro com um gol contra.

Decidi não compartilhar a mesma camisa com ele na próxima pelada. Torero sabe que mais gostoso do que manter um tabu é quebrá-lo.

Observação: Esta crônica foi publicada, originalmente, no blog do escritor José Roberto Torero, na UOL.

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