O bigode do xerife

Rodolfo Rodriguez fez 55 anos. O motivo é frágil, reconheço, para justificar essa crônica, mas o aniversário dele despertou em mim a nostalgia das noites de quarta-feira, na Vila Belmiro, na metade dos anos 80. O uruguaio foi o melhor goleiro que vi jogar em um estádio de futebol.

Em 1985, tinha 11 anos. Durante dois anos, fui várias vezes assistir ao Santos jogar em casa. Assistir, corrigindo, Rodolfo Rodriguez. O Santos havia desmanchado aquele time que levou o Campeonato Paulista de 1984. Sobraram Rodolfo, uns bons jogadores e uma série de vigaristas de chuteiras.



O uruguaio ficava exposto, carregava a equipe nas costas em muitas partidas. Também por causa disso, liderava a seleção uruguaia e foi à Copa do Mundo, em 1986, no México.

Sou corintiano. Então, percebe-se com facilidade a importância que o goleiro teve naquela fase de minha vida. Sonhava em ser jogador de futebol e enxergava nele um mestre. Joguei em vários clubes, inclusive o mesmo de Rodolfo, até que a autocrítica, aos 18 anos, me convenceu que futebol seria passatempo de final de semana. Ou de times de faculdade. Ou peladas em gramada sintética e na areia.

Gostava de ir à Vila Belmiro às quartas-feiras à noite porque o estádio ficava mais vazio. Preferia quando o Santos encarava clubes do interior pela mesma razão. Em jogos assim, poderia ficar atrás do gol. Vê-lo, de perto, se movimentar na grande área. Orientar zagueiros, corrigindo o posicionamento deles. Comunicar-se com o resto do time em cobranças de escanteio. As conversas, breves e diretas, fascinavam a testemunha daquele balé bruto, acelerado e, aparentemente, sem rumo.

Atrás do gol, sentia as defesas dele como se fossem minhas. A forma dura, mas respeitosa como tratava os adversários. Ele sabia que podia, com duas ou três frases, mais o olhar, afugentar uma jovem revelação do interior da grande área. Ou equilibrar forças com os medalhões que pretendiam demarcar território na casa dele.



Sempre lamentarei por não estar lá na noite em que o uruguaio fez seis defesas em sequência contra o América, de São José do Rio Preto. Falar em Rodolfo Rodriguez também é associá-lo a milagres como aquele.

Mas vivenciei outra partida entre o Santos e o América, numa quarta-feira chuvosa. A Vila Belmiro com três, quatro mil pessoas mais ou menos. Jogo que morreu em 0 a 0, somente para constar nas listas de estatísticas de futebol.

Aquele jogo, para mim, simboliza Rodolfo Rodriguez. O América tinha se transformado em um pequeno chato, cheio de irritação. Arrancava empates dos grandes clubes, mas se atrapalhava com os colegas coadjuvantes.

O América jogava com um atacante loiro, cara e jeitão de surfista. Ricardo havia sido revelado pelo Corinthians. Não metia medo pela habilidade. Incomodava mais pela boca do que pelos pés. Perturbava na grande área. Faltas, palavrões e cutucões nos defensores do Santos. Para qualquer toque que recebia, chorava as pitangas no ombro do juiz e pedia cartão amarelo aos adversários.

Não sei exatamente o porquê, mas o atacante-galã pensou que poderia mexer com o goleiro uruguaio. Talvez fosse cego porque não notou que o bigode de Rodolfo, clássico dos homens com estrela no peito, dos filmes de faroeste, não era característica suficiente para afugentar um atacante mal educado. O menino - quem sabe pela falta de experiência? - pensou que o bigode deveria ser decoração ou excentricidade de gringo.

Numa cobrança de escanteio, as benditas cobranças que tornam futebol e rugby primos de sangue, Ricardo se enroscou com um dos zagueiros do Santos. A partida se arrastava como a água da chuva no chão duro das arquibancadas. As intrigas, então, se tornavam mais atraentes do que a bola.

Na discussão na pequena área, Rodolfo se meteu. Meteu o dedo na cara do atacante, um moleque de 20 anos, desbocado conforme a coerência da idade. Num momento de silêncio, no intervalo da gritaria, a voz do goleiro sobressaiu. Apenas escutei a voz grave, em bom portunhol:

- Aqui mando eu. Você não entra mais aqui, moleque!

Confesso que não me lembro se eram essas as palavras, literalmente. Mas a bandeira fincada dava nome ao proprietário do terreno. Rodolfo despejou o garoto surfista. Isso no primeiro tempo. O atacante até que tentou, no final da mesma etapa, voltar à grande área. O goleiro deu meia dúzia de passos, suficientes para que o menino recuasse.

O atacante do América terminou o primeiro tempo caindo pelas pontas, bem diferente de quem costumava atuar enfiado entre os zagueiros. No segundo tempo, virou um meia esquerda, daqueles bem recuados. Acabou substituído.

No mesmo jogo, chamei pelo goleiro, admirado mais pelo conjunto da obra, do que pelas defesas, escassas num empate mirrado. Rodolfo ouviu e acenou de volta. Para um moleque de 12 anos, cheio de fantasias sobre ser goleiro, Deus havia falado comigo. O melhor jogo do campeonato.

Quase dez anos depois, em 1993, vi Rodolfo em campo pela última vez. Aos 37 anos, vestia a camisa do Bahia contra o Cruzeiro pelo Campeonato Brasileiro. Parecia cansado e desmotivado. Tentava, em vão, segurar o ataque mineiro, com um fenômeno de 17 anos, rápido, magro e letal.

Rodolfo Rodriguez, defendendo um time caído de quatro, fez outra defesa. Ajoelhou-se como se orasse para a tortura cessar. Colocou a bola ao lado para esbravejar com os trapalhões da defesa. Não viu Ronaldo, que tomou a bola dele e marcou mais um gol.

Senti compaixão por aquele santo milagreiro, que cumpria a pior das penitências. Mas Rodolfo era demasiado humano para entender o momento de jogar as luvas numa gaveta qualquer e trancar o armário do clube. Entregou a estrela dourada e virou rancheiro no Uruguai.



De vez em quando, vejo elogios apressados a goleiros voadores, escravos do show das câmeras, frágeis no instante que a responsabilidade cai sobre suas costas. De vez em quando, vejo goleiros que só sabem jogar com defesas sólidas, que tremem diante de partidas enroladas e atacantes encardidos.

Nestas horas, penso em Rodolfo Rodriguez. Sóbrio. Sério. Reflexos felinos. Líder que mandava e desmandava com o senso de justiça dos xerifes. O Santos nunca mais teve um goleiro daquele peso. Outros chegaram perto. Até ganharam mais títulos. Chegaram à seleção. Mas nenhum deles é ovacionado, mais de 20 anos depois, como se fosse semana passada, no centro do gramado da Vila Belmiro.

Parabéns, goleiro uruguaio! E obrigado por alimentar a saudade das noites chuvosas de quarta-feira.

Comentários

Beth Soares disse…
Nossa! Você sabe que não me interesso muito por futebol, mas esse texto vai muito além disso! Consegui me transportar para o estádio, sentir as emoções que descreveu. Imagino o quanto essas belas lembranças são importantes para você.
E é impressionante: quanto mais te leio, mais admiro sua sensibilidade.
Parabéns!
Mariana Dias disse…
Nossa, concordo total com a Beth. Até senti vergonha de ser santista e não saber tanto desse goleiro como você. hahaha Mas como ela disse, não é sobre futebol, mas sobre um ídolo de infância. Adorei o texto!