Pedrinho, o racista?



Monteiro Lobato não teria criatividade para prever a fábula que o envolveu no Conselho Nacional de Educação (CNE) e no Ministério da Educação. A fantasia do politicamente correto – digna de um processo de Kafka – engrossou a lista de episódios nos quais a educação se ajoelha aos pés dos interesses políticos ou da vaidade acadêmica distante da realidade cotidiana brasileira.

O problema foi a recomendação do CNE para que o livro Caçadas de Pedrinho , visto como racista, fosse retirado do acervo do Programa Nacional Biblioteca nas Escolas ou que fosse adotado no ensino público com uma nota explicativa. A segunda sugestão foi compartilhada pelo ministro Fernando Haddad, interessado em jogar um cobertor sobre o fogo que ameaçava se alastrar. Ou – quem sabe? – abafar a inconveniência ao marcar o livro com uma letra escarlate.

A obra, publicada em 1933, foi tirada do contexto histórico. Soa superficial supor que o livro seja capaz de provocar a reprodução literal de uma mentalidade discriminatória a ponto de fomentar o comportamento preconceituoso por parte de crianças.

O Conselho, que tomou a decisão por quatro votos a um, abraçou outra premissa perigosa. Os conselheiros entenderam que os professores não estariam preparados para filtrar o conteúdo do livro e repassá-lo no contexto adequado aos alunos.

Como toda generalização, a premissa não se sustenta numa análise mais detalhada. Como padronizar o comportamento de todos os docentes e desconsiderar diferenças regionais, econômicas, culturais e de infra-estrutura entre as redes de ensino? Como ignorar a relação entre a obra e atividades ou projetos pedagógicos? Como desprezar o uso do livro dentro de um conteúdo programático pré-estabelecido?

Considerar que o professorado atingiu tamanho grau de alienação é relegar em plano secundário a Lei 10639/03, com sete anos de vida, que estabelece o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena nas escolas públicas e privadas do país. Ainda que seja discutível o método, os cursos de capacitação de educadores no sistema público conseguiram, de forma tímida, colocar os professores em contato com a temática racial brasileira contemporânea.



É claro que não se pode esperar profundidade ou a formação de especialistas em relações étnico-raciais, mas os docentes também passam por formação básica nas licenciaturas, fora o fato de que o tema – principalmente por causa das cotas nas universidades – alcançou patamar de razoável relevância na mídia nacional.

Recuso-me a crer que o professorado, por mais deficiente que seja/esteja, não tenha a capacidade avaliar um conteúdo publicado há quase 80 anos. E pior: reproduzi-lo como verdade dogmática.

Monteiro Lobato, como qualquer autor, é fruto do mundo em que viveu ao reproduzir valores, contradições, cores e crueldades. Este fator foi descartado quando o CNE o tornou alvo do momento, como se Lobato fosse réu no julgamento de carrascos de outro cenário e sentenciado por magistrados cegos pela ânsia da perseguição do detalhe, jamais do todo.

Mark Twain (As Aventuras de Huckleberry), James Conrad (O Coração das Trevas) e William Shakespeare (O Mercador de Veneza), por exemplo, tem carteirinha no mesmo clube. Todos foram acusados de racismo por estes livros, sempre em outros períodos históricos.

O movimento atrás das cortinas do CNE escondeu uma disputa político-partidária que cerca a análise das relações raciais brasileiras. A Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, que encaminhou o problema ao Conselho depois de procurada por um estudante de mestrado da Universidade de Brasília, seguiu – por exemplo - o caminho do ministro e amenizou o fato.

No cabo de guerra entre os políticos, vence a visão maniqueísta e conflitante do problema. Sobra desinformação e jorra ideologia oferecida como conhecimento. O tema é ignorado como questão coletiva e sintoma de desigualdade social.

A alta cúpula da educação brasileira, ao deslocar Monteiro Lobato da história, preferiu aderir aos ares inquisitórios do que simplesmente colocar na agenda o lado perverso do sistema educacional do país ou agir como braço de fiscalização do ministério e suas políticas públicas.



O livro Caçadas de Pedrinho, por um dos sarcasmos da história, foi publicado no mesmo ano que Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Clássico da sociologia, o livro serve como divisor de águas entre a visão biológica de raça, com nascimento na metade do século XIX, e a ideia de que o racismo brasileiro seria de menor grau por causa da elevada mestiçagem.

Ambas as mentalidades estão ultrapassadas em termos científicos. Sabe-se que, na atualidade, o olhar sobre as relações e os conflitos raciais só fica mais arejado se interpretado pela combinação de critérios sócio-econômicos e de aparência física.

É uma pena que o olhar científico, por natureza, seja incapaz de conter a vaidade política, o obscurantismo de pensamento e os preconceitos embutidos nas micro-relações de poder. Como o estilingue de Pedrinho, o Conselho acertou o passarinho, mas na árvore errada. A decisão anti-Lobato é jogar fora a oportunidade de se dar o valor adequado a um tema que, na visão de parte da intelectualidade branca, deveria permanecer invisível.

Banir um livro de Lobato, quase 80 anos depois, é enterrar falhas humanas, que deveriam ser enquadradas com decência no espaço e no tempo, sem aprender com elas. É a manifestação da intolerância e do radicalismo de quem enxerga o mundo em preto e branco, sem tonalidades mestiças.

Comentários

Anônimo disse…
Vivemos uma onda política tão burra quanto o fanatismo religioso. É preciso ver o contexto etc. Daqui a pouco seremos obrigados a usar só eufemismos.
Anônimo disse…
Onda politicamente correta, digo. Digitei no cel e me atrapalhei rs