Deus para presidente

Os tios de uma amiga defenderam, convictos, à mesa da cozinha:

— Não votamos em Dilma. Ela mata crianças e fechará as igrejas.

Outro amigo justificou seu voto, em outra ocasião:

— Jamais votarei em Serra. A mulher dele fez aborto.

Pouco importa o resultado: o próximo presidente do Brasil será um mistério. Não sabemos o que pensa. Desconhecemos suas propostas e programas de governo. O projeto de país ainda é peça de ficção. Não há um olhar de longo prazo. Sugestões de infra-estrutura não foram cogitadas nos comícios, horário eleitoral gratuito ou debates de TV. Os grupos de interesses em torno do candidato sobreviveram com sobras nas sombras.

Convivemos com os personagens Dilma e Serra, seus moralismos e valores hipócritas, focalizados para atender uma parcela do eleitorado, que deseja confirmar pontos de vista alheios à administração pública. De ambientalistas a religiosos, ambos compareceram a missas, falaram em Jesus e até assinaram compromissos para atender aos radicalismos religiosos.

Dilma e Serra são personagens que se submeteram ao fundamentalismo religioso e aos interesses de pequenos grupos que mesclam política e religião como se fossem irmãos univitelinos em um processo eleitoral.

O aborto se transformou no pré-requisito básico para o próximo presidente. A saúde pública virou badulaque na estante da sala, enquanto o moralismo e a leviandade se instalaram na mesinha de centro. Todos mentem, ninguém se posiciona. Apostam no esquecimento do eleitorado para mudar a correnteza ou enterrar a temática de vez.

Bispos e pastores remontaram a argumentos medievais, no sentido violento do termo. São irresponsáveis quando descartam o olhar político a partir da consciência coletiva de problemas e soluções. Preferem enganar suas ovelhas, que se mantém inertes no currais, a partir do reforço da doutrina e dos interesses eleitoreiros de seus candidatos.

O aborto se aproximou do moralismo barato, que ignora o tema como ferida social e problema familiar. Como engodo, a construção de família idealizada como publicidade de margarina. Religiosos e fiéis fazem vistas grossas para mulheres que, mesmo religiosas e de bom poder aquisitivo, são obrigadas a se esconder como se vivessem sempre dentro de clínicas.

As mulheres, desta forma, são desumanizadas em prol da sede de poder de quem opera pela intolerância. O Sistema Único de Saúde faz 118 mil curetagens anuais. Uma em cada cinco mulheres de 20 a 50 anos já abortou, por exemplo. Parte delas é evangélica ou católica. A necessidade do aborto as afastaria de Deus? Estas mulheres deveriam queimar na fogueira ou descer ao inferno sem escalas?

Por trás do diálogo de surdos, esconde-se outro aspecto sócio-econômico. As mulheres ricas freqüentam clínicas caras, higienizadas conforme normas internacionais de saúde pública e sem riscos de morte. As mulheres pobres, por outro lado, encaram açougues com homens de branco, lugares onde sobreviver pode representar um jogo de dados.

Infelizmente, a relação política e, por vezes, promíscua e perversa entre Estado e religião existe desde o início da história brasileira. A colonização começou e se solidificou com a parceria. Os portugueses montaram o Estado antes da nação e relegaram o suporte ideológico aos jesuítas.

No período imperial, os dois monarcas mantiveram conexões profundas com a Igreja. Os religiosos interferiram em questões políticas como fim da escravidão, republicanismo e imigração.

A República apenas reforçou o relacionamento. Nenhum presidente jamais questionou dogmas religiosos cristãos. Ou ressaltou o sincretismo brasileiro, relegado ao segundo plano em exercícios contínuos de cinismo. Hoje, as bancadas religiosas – nas variadas vertentes – batem no peito, com orgulho, quando atendem seus currais eleitorais em nome de Deus.

Em Santos, onde nasci e resido, um ex-secretário de saúde quase perdeu o emprego porque determinou que a imagem de Nossa Senhora Aparecida fosse retirada de um pronto-socorro. O argumento oficial era o respeito ao Estado laico, mas o secretário era líder de uma Igreja protestante. Nem o secretário ou os revoltosos pensaram, em momento algum, nas filas ou nas faltas dos médicos nos postos de saúde, apenas para resumir a lista de obstáculos.

A presença do aborto na agenda político-eleitoral está impregnada de duas ironias. A primeira delas é que somente Marina Silva, entre os principais presidenciáveis, incluiu o assunto no programa de governo. Logo ela que, publicamente, jogou com a proposta de plebiscito para não se arriscar. Transitou no mundo do politicamente correto. Três em cada quatro brasileiros é contra o aborto, conforme pesquisas de opinião.

A segunda ironia é que a candidata do PV, no documento, defendeu um programa de assistência pública a mulheres. Uma ideia parecida com aquela assinada por José Serra, quando era ministro da Saúde, no governo de FHC.

Ambos – Marina se omite e Serra renega – fizeram teoricamente a opção correta. Trataram o tema como um problema social e cidadão, pelo menos no papel. Mas ambos se beneficiaram do obscurantismo e da voracidade inquisitória dos fundamentalistas que, cegos de repulsa, votam nos boatos e se agarram nos preconceitos e na desinformação.

Candidatos e eleitores, neste ponto, se parecem. Vestem as máscaras, desprezam o interesse público. E digitam o nome de quem não deveria ser um messias – ou um simples sacerdote -, com voz política para pormenorizar as habilidades de administrador público.

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