O lugar escuro (Contracapa # 10)

O livro “O lugar escuro”, de Heloisa Seixas, é um daqueles casos de namoro mal resolvido. Tenho o livro há mais de dois anos, tentei lê-lo uma ou duas vezes, mas sempre o abandonei no meio do caminho por excesso de trabalho. Na semana passada, resolvi usá-lo como exemplo em sala de aula. Reiniciei a leitura e, três dias depois, me arrependi: por que não o li antes?

A obra é um tratado de amor entre pais e filhos. Escrito em primeira pessoa, o livro expõe as vísceras de Heloisa Seixas a partir do relacionamento com mãe, portadora do Mal de Alzheimer. O texto é de uma honestidade assustadora. Nenhum dos envolvidos é poupado. Nenhum ganha destaque nos álbuns de família. Não há espaço ou tempo para sorrisos ou para lamentações. Somente sentimentos que sangram a cada instante particular da doença.

Heloisa Seixas fala da condição da mãe a partir do termo “loucura”. A senhora que se arrumou para o café da manhã como se estivesse em casa. A mulher que perdeu as palavras e as costas largas, marcas de quem sempre se orgulhou de absorver o sofrimento sem ser vítima.

Uma filha, quando tem a coragem de ver a mãe publicamente como louca, não poderia ser mais incorreta. Nem tão justa. O Mal de Alzheimer e outros tipos de demência são vistos desta maneira na sociedade contemporânea. Ser louco ameniza a carga de responsabilidade, mas recebe o peso do estigma do incurável, do insolúvel, do problema ambulante.

Os loucos seriam, neste sentido, como as crianças, os únicos capazes de nos dizer a verdade, sem barreiras, sem preconceitos, sem pudores. Os loucos seriam também os únicos com a habilidade de engolir e digerir a própria insanidade, ainda que por instantes fugazes. Os loucos seriam ainda o grupo que distribui amor com inocência e magoa com pureza, que vê beleza na escuridão invasiva. Os loucos permaneceriam em estado de felicidade ou de dor absoluta, em um campo de percepção que os demais não conseguem observar.



Tão duro quanto o estado de insanidade é o cotidiano de quem acompanha o paciente que – de maneira involuntária - não se encaixa mais, por questões psiquiátricas, neurológicas ou combinadas. Como manter o controle mental ao lado de quem o perdeu em caráter irreversível? Como lidar com o preconceito, com os olhares reprovadores ou ignorantes dos outros? Adaptar-se a um novo mundo de constrangimentos ou manter o indivíduo isolado numa ilha deserta, mesmo que seja o apartamento de sempre?

Heloisa Seixas não veste a capa tampouco empunha a espada dos heróis. Divide seus medos, incompetências, ansiedades e rancores. Diz, com a naturalidade dos confessores, que não suportava ver a mãe – em estado avançado da doença – trocar as fraldas ou tomar banho, como também não conseguia passear com ela em cadeira de rodas.

A ironia deste relacionamento, transformado pela ausência mental gradativa, é que a autora nunca exerceu o papel de preferida. Nunca havia sido a queridinha da mamãe. Pelo contrário: estampava nos traços do rosto e nas atitudes os comportamentos do pai, que havia abandonado a esposa por outra mulher décadas atrás. Heloisa seria sempre a segunda da lista, sob quaisquer perspectivas ou critérios.

O livro caminha por todas as etapas de evolução da doença. Desde o momento em que os familiares perceberam, de vez, as alterações de comportamento dela até os apagões cerebrais. Heloisa, em seu primeiro livro de não-ficção, indica também como as sucessivas transições da mãe alteraram as relações afetivas com o irmão, o marido – o escritor Ruy Castro – e a filha.

Nem de longe, “O lugar escuro” é uma obra de psicologia e psiquiatria. Não há glossário de sintomas ou uso de termos médicos e científicos. É um livro em que a humanidade de alguém se manifesta pela dureza de estar sã diante da insanidade. Insanidade que cresce diante dos olhos e escancara a paralisia da testemunha e a impossibilidade de cura do paciente.



A autora nos conduz a um universo de impotência, de palavras não ditas, de assuntos mal equacionados, ainda mais quando o interlocutor a abandona gradualmente, presente apenas pelo corpo em ruínas.

“O lugar escuro” talvez seja a melhor forma que Heloisa Seixas encontrou para acertar as contas com a mãe, a única leitora impossível.

Comentários

alano_luiz disse…
Mestre belo texto, sempre competente na arte de informar com as palavras. Abraços do mano roamrinho.