Maloqueiros, uni-vos!



O futebol me levou ao jornalismo. O jornalismo me afastou do futebol. Durante 15 anos, não tive vontade de escrever sobre clubes, partidas e jogadores. Bastavam os cronistas. Aceitava os vícios da cobertura. De dois anos para cá, reencontrei o prazer de palpitar sobre o futebol e, principalmente, sobre os detalhes da festa. Mas não havia notado um fato tão óbvio quanto surpreendente, como um passe de calcanhar de Sócrates: jamais escrevi sobre o Corinthians, meu time de coração.

Construí alguma barreira que me impedia de observar com palavras os fatos que cercam o clube. Há meses, ensaio – por exemplo – um texto sobre Ronaldo, o Fenômeno. Mudam apenas os ângulos, mas as ideias caem no vazio entre os neurônios e a memória. Seguem aprisionadas cumprindo pena por um crime desconhecido.

Resolvi romper o muro a fórceps e escrever sobre o Corinthians, na data mais apropriada. Esqueça, leitor, dados sobre a história, relatos estatísticos sobre fracassos e conquistas, ataques aos adversários, episódios folclóricos, lamentações sobre o passado recente. Também não é hora de baixar as portas e fazer balanço geral.

Ao contrário da paranóia humana de rejuvenescimento, um clube de 100 anos deve se sentir inflado, orgulhoso. Mais do que cicatriz de sobrevivência, 100 anos é vitalidade. Este orgulho significa ir para a rua, aceitar as piadinhas dos rivais, vestir a camisa com mais pompa do que em dia de título, sorrir diante da maldição do centenário que paira sobre os clubes brasileiros. E torcer para que, daqui a dois anos, os santistas façam o mesmo. E daqui a quatro anos, os palmeirenses repitam o ritual. Não existimos sem eles e vice-versa.

Decidi, em caráter definitivo, escrever sobre o Corinthians depois de assistir à entrevista de dois ídolos. O primeiro foi Sócrates, uma das mentes mais sensatas do futebol atual. Sócrates foi taxativo e absoluto: a torcida do Corinthians é a cara do Brasil. Nenhum outro clube tem uma torcida que reflita de maneira tão verdadeira o jeito do brasileiro. Entender o Corinthians é compreender nossa natureza. O restante é falsidade.

Minutos depois, mudei de canal e vi Neto caminhando ao lado do repórter Fernando Fernandes, da Band, entre painéis de grandes mitos do Corinthians. Neto disse que chorou duas vezes por causa do futebol. A última foi a mais difícil: o dia em que equipe caiu para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro. Ele estava a trabalho, pela emissora, como comentarista. Quase chorou no ar.

Neto disse que não suportou ouvir outros funcionários da empresa vibrando com o rebaixamento. Para não brigar, pegou o carro e foi para casa. Mal se lembrava do trajeto. Ao estacionar o carro na garagem, desabou em choro, como criança.

Como todo moleque, decidi meu time de futebol em uma fase de glórias do clube que resolvi adotar. Nenhuma criança torce, ama um clube nascido para perder. Tinha oito anos. Era 1982. Virei corintiano por causa de Sócrates e cia. Com aquela idade, claro, não tinha menor ideia do que significava a Democracia Corintiana, o mais importante movimento político dentro do esporte brasileiro.

Assistia maravilhado aos passes de calcanhar do Doutor. Tentava imitar nas peladas da escola, antes de decidir ser goleiro. Era o truque do momento, depois incorporado ao repertório popular de qualquer campinho de bairro.

Ser corintiano é estar preparado para a dificuldade. Uma adversidade dupla. A maioria dos torcedores são sujeitos destinados ao sacrifício, que abrem mão de necessidades elementares para acompanhar o time. Comem mal, dormem mal, enfrentam ônibus lotados, descasos de cartolas e políticos para 90 minutos de êxtase religioso.

Cientista algum seria capaz de explicar como, ainda com obstáculos semelhantes, outros torcedores jamais serão capazes de reproduzir a maneira corintiana de sofrer. E de ter prazer.

O corintiano está acostumado à dor. Couro duro mesmo! É quase um masoquista. Cultiva certo sadismo consigo mesmo. É capaz de abdicar de um craque sofisticado, de um bailarino, e adotar com amor de mãe um brucutu que sangra em campo enquanto sorri com grama entre os dentes. As partidas fáceis parecem menores. As goleadas alegram, mas não conduzem à felicidade.

O corintiano quer ganhar de pouco. Se possível, de 1 a 0, com gol de bico aos 47 minutos do segundo tempo. Os jogos memoráveis, em qualquer boteco, são aqueles em que choro e gargalhadas nasceram irmãos siameses.

O título de 1977, por exemplo. O gol de Basílio não foi plástico, resultado de jogada de gênio. Feio, na aparência. Lindo, de coração. Foi um gol de aço, um parto em que a mãe beirou o desmaio. Confuso, angustiado e sem esperança, sentimentos trocados no segundo seguinte ao chute que matou a defesa da Ponte Preta.

As derrotas também doem mais. Marcam como ferro em brasa, mas deixam a casca mais grossa. Perder sem se ajoelhar. Lutar ainda que consciente da derrota inevitável. Goleada não gera revolta ou lágrimas. Falta de empenho é demissão de jogador na certa.

O torcedor corintiano idolatra seu semelhante. Ama Biro-Biro, que carregava piano para Sócrates, Zenon e Casagrande. Como muitos que todos os dias carregam caixas e outros instrumentos menos nobres.

O corintiano vê como espelho o jogador que veio de cenários parecidos. O centroavante, de apelido Viola por causa da chuteira vagabunda usada no terrão, que decidiu um Campeonato Paulista quase se arrastando para alcançar a bola e executar o Guarani, em Campinas.

O corintiano não nasceu para a nobreza. É o único que se chama de louco, em um lapso de lucidez. É o único que estampa no peito que não vai abandonar sua crença na pior etapa da história. Fé não se larga à beira do campo. Cresce na adversidade. Multiplica-se na crise. Aumenta a cada chibatada no lombo em campos de segunda.

Corinthians, parabéns! Torcedor maloqueiro, celebre a entidade e permaneça justo com aqueles que – com sabedoria – escolheu para amar. Tolerando defeitos, apaixonando-se todos os dias pelas qualidades. Você mantém o casamento perfeito, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Com a diferença de que o objeto de seu amor não morrerá jamais.

Comentários

Wilson Roberto disse…
E Salve o Corinthians!
Bárbara Renilze disse…
"Quando o Corinthians é tudo, tudo é justificado". Parabéns, todo poderoso!!
René disse…
"Nenhuma criança torce, ama um clube nascido para perder."

Que bobagem. A torcida do Corinthians é conhecida justamente por crescer e apoiar o time nas adversidades. Ser corinthiano independentemente dos resultados da equipe é uma das marcas centrais da nossa torcida. Vide o emblemático período de jejum de títulos antes da conquista do Paulista de 77, no qual a massa de torcedores só aumentou.
Paulo Sousa disse…
É um dos textos mais belos que já vi sobre o Timão. Parabéns pela inspiração!

Só espero que não demore outros 100 anos para você escrever sobre o Corinthians de novo...

Abração!
Paulo Sousa, espero que não. Realmente! Muito obrigado pela leitura e pelo comentário. Abraço!
Zenon disse…
O time dos anarquistas:
100 anos de ódio e resistência

Mauro Carrara

Há exatos 100 anos, um grupo de operários do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, praticaram um ato de “desobediência civil”.

À luz de um lampião, na rua, os insurretos decidiram criar um time de futebol do povo e para o povo.

Atrevidos, decidiram que a nova agremiação não deveria se contentar com a várzea.

O plano era formar um esquadrão para enfrentar, de igual para igual, os clubes da fechada elite paulistana.

Ousados, já meteram a mão em foices para abrir uma cancha num terreno baldio, pertencente a um lenheiro do bairro.

E, no primeiro jogo, contra o União Lapa, saíram em passeata até o palco da contenda.

Mas como passeata? Passeata, sim senhor, porque essa gente era sobretudo anarquista, com a graça do bom Deus.

O primeiro presidente do clube, o ítalo-brasileiro Miguel Battaglia, por exemplo, tivera contanto com o anarcossindicalismo ao prestar serviços para a Light.

É dele a frase cândida, mas também desafiadora, que guia a nação alvinegra até hoje: “Este é o time do povo, e é o povo que vai fazer o time”.

Essa turminha do barulho lia o jornal anarquista de Gigi Damiani, o La Battaglia, que exortava os trabalhadores a fundarem suas próprias escolas e agremiações esportivas.

O time dos anarquistas não tinha bagunça. Cada um sabia das suas atribuições. Cada um assumia uma responsabilidade, conforme o que se aprendera de Bakunin e Malatesta.

E assim se estruturou. Em 1913, os meninos bons de bola conquistam o direito de participar da divisão principal do futebol paulista.

Ao mesmo tempo, o Paulistano e a A. A. das Palmeiras (nada a ver com o atual Palmeiras), enojados do cheiro do povo, se retiraram da liga e resolveram disputar um torneio paralelo.

Começava ali uma história de ódio.

A imprensa questionava a presença de um time de iletrados no mundo do chiquérrimo futebol, um jogo inventando por lordes ingleses.

Quanta petulância!

E para acirrar ainda mais os ânimos, o time dos anarquistas admitia gente de todos os tipos.

Logo agregava os negros, os mulatos, os caboclos e outros filhos da terra.

Mais um pouco e atraía também os outros segregados, polacos, libaneses, alemães, sírios, japoneses e gregos, gente que somente se entendia na alegria de torcer pelo Corinthians.

Imaginem o escândalo: um time de anarquistas, pretos, imigrantes e boêmios invadindo as elegantes festas do Velódromo.
Anônimo disse…
Graças a deus não tive esse desprazer de ser corintiano que tira sarro de todo mundo e quando perde falta no serviço,além do que o corinthians tá longe no fanatismo para a torcida do Flamengo basta ver o público do time no campeonato,mas a crônica como está bem escrito e contextualizada para a situação dos gambás que estão comemorando o semternada e não centenário.Divirto-me com a ignorãncia e a mediocridade deles.
Mauro, nada mais coerente o início da história do clube. Belo texto!!! Abraço!!
Lívis disse…
Sendo mulher e São Paulina, esse sentimento "maloqueiro" é algo que nunca vou entender.
Bruna Azevedo disse…
Republica Popular do Curintia???

Porque não Federação Libertária...haha


Tenho medo da república, mas sendo do curintia tá valendo...hahaha

ps> adorei o título do texto
Unknown disse…
"...permaneça justo com aqueles que – com sabedoria – escolheu para amar. Tolerando defeitos, apaixonando-se todos os dias pelas qualidades."

Grandiosos, os princípios. Honesto o pensamento. Tolerancia das diferenças. Humildade.

Ser Corinthiano.

Grato pela inspiração.
Anônimo disse…
Ser corinthiano sim, é um orgulho que nem todos podem ter!

Parabéns pelo texto, professor :)

E, reiterando: espero que não leve mais 100 anos para escrever sobre o Corinthians, haha.

Beijos!
Rafael Oliveira Alves disse…
O texto é virtuoso, como os passes de calcanhar de Sócrates que nunca conseguiu imitar.
hahahahahahahahahahaha!

Parabéns Corinthians! Belas palavras!