Onde surgem os solistas?



O Solista é o típico filme que merece ser dissecado em camadas, tamanha a densidade e as sutilezas da história. É uma daquelas obras “baseadas em fatos reais”. Coloco entre aspas porque poderia parecer pouco crível se a história não tivesse nascido nas páginas do Los Angeles Times e passado pelo formato livro, antes de virar blockbuster.

O Solista mostra a relação entre o jornalista Steve Lopez, autor das matérias e do livro que originam o filme, e o violoncelista Nathaniel Anthony Ayers Jr, um morador de rua que sofre de esquizofrenia. Lopez é interpretado por Robert Downey Jr.; e Ayers, por Jamie Foxx, que alcança um nível próximo de quando fez o papel de Ray Charles (2004).

O filme, dirigido por Joe Wright, pode ser decifrado por vários caminhos. Um deles, por exemplo, discutiria o envolvimento entre os jornalistas e os personagens de suas histórias. Lopez escreve várias colunas sobre o músico e o ajuda a ter uma vida um pouco mais confortável. O repórter localiza a irmã de Ayres, que não o via há anos. Um dilema ético clássico para a profissão: repórter apenas conta o que vê ou assume seu papel como sujeito que pode interferir nos fatos?

Outra possibilidade é compreender O Solista a partir do amor pela música. Ayers, ex-aluno da renomado escola Juilliard, idolatra Beethoven e reafirma a obra dele como dádiva pelas cordas do violoncelo. A música torna menos amarga a rotina dos sem-teto em um abrigo público.

O terceiro olhar permitiria entender o filme como denúncia social, se pensássemos na doença mental entre os moradores de rua. O Solista provoca desconforto quando desnuda o abandono de pessoas doentes, a indiferença dos políticos e a truculência das forças policiais. Infelizmente, nada inédito para quem mora em médias e grandes cidades.

Em Santos, onde resido, a estimativa é de 600 pessoas nas ruas. A principal desculpa das “autoridades” é que a maioria vem de outras cidades. A certidão de nascimento ou a origem como passaporte para a inércia. O forasteiro seria menos humano? Por isso, pode permanecer em estado animal?



Quero uma quarta via. Mais individual. Mais pessoal. Onde o filme esbarrou na maior parte do tempo. O Solista me fez lembrar de um amigo. Conheço Duda há pouco mais de cinco anos. Cheguei a escrever sobre ele no ano retrasado.

Duda mora na vizinhança, numa casa de fundos, com a esposa. Moradores do bairro dizem que vive ali há mais de 30 anos. Lembram-se dele com uniforme da Marinha. Os mais antigos o consideram extremamente inteligente. Falam sobre ele com pesar. Os mais novos o ignoram. Se possível, atravessam a rua. Quando o encontro é inevitável, constrangimento e passo apertado.

Duda é um solista. Não toca instrumento algum. Filosofa solitário. Não precisa de platéia. Às vezes, sequer de interlocutor. Pragueja suas ideias no mais alto timbre, ciente de que entrarão à força pelas janelas dos prédios da avenida.

Para ele, eu sou o jornalista. Não tenho nome. Ele nunca se preocupou em perguntar. Eu nunca achei necessário dizer. O anonimato caprichoso nunca estabeleceu diferença nas nossas conversas.

Duda tem alguma doença psiquiátrica. No início, a vergonha prevalecia sobre a curiosidade e me impedia de perguntar. Hoje, a informação é irrelevante. Não penso na condição dele quando nos encontramos.

Eu, a caminho do trabalho ou fora de casa para qualquer tarefa cotidiana. Escravo do tempo indisponível.

Ele, sempre de calça de moletom, uma camiseta, meias e chinelo de dedo. Mudam somente as cores. Às vezes, um pano – turbante improvisado – cobre os cabelos. Tempo único, indecifrável para os relógios.

O solista do meu bairro vai de Marx a Freud como se estivesse em qualquer banco de universidade. Aliás, sem a empáfia dos acadêmicos que se algemam nos castelos para não ver a luz do mundo lá fora. Duda é um professor de vocação. Traduz a complexidade conceitual na simplicidade da árvore da esquina.

Meu amigo é fanático por Helio Costa, candidato ao governo de Minas Gerais. Mas mistura o político, que foi ministro de Lula, com o repórter-correspondente da Rede Globo nos anos 70. São a mesma pessoa, mas sujeitos provavelmente distintos pelo tempo e pelo vírus da política.

Duda sabe que dou aulas em universidade. E sabe que nos encontramos quando vou ou retorno de lá. Conversa comigo em movimento. Certa vez, me acompanhou por cinco quadras. Preocupa-se com meus alunos. Deseja saber como são, o que pensam, como se comportam como jornalistas. E sempre repete duas lições fundamentais, que deveriam ser marcadas em brasa na testa de qualquer repórter.

- Peça para que dêem um exemplo.

- Peça para que perguntem o porquê.

Minha filha Mariana o temia. Criança, ela incorporou a imagem de que o filósofo era doente. O sentido perverso do termo veio de algum adulto da vizinhança, atolado na ignorância do próprio umbigo. Até a noite que Duda nos encontrou na esquina. Com palavras doces, ele fez com que Mariana apertasse suas mãos e o compreendesse como alguém que integra nossa rotina de ir e vir.

O solista do meu bairro some por vários dias. É parte do tratamento a reclusão. Outras vezes, passo ao lado dele como se fosse um fantasma. Não posso incomodá-lo por estar preso em seus próprios pensamentos.



Os solistas estão espalhados pelas cidades. Basta reparar neles e, principalmente, ouvi-los. Não são loucos dignos de pena ou invisibilidade. São como músicos de uma orquestra temporariamente dissolvida. Falam nossa língua, mas que nossos padrões mesquinhos de comportamento teimam em não codificar.

Estes solistas sempre tem algo a explicar. Muitos enxergam e sentem o mundo por ouvido absoluto. Até porque, para todo músico, um dos momentos de raro prazer é o vôo solo. Nesta hora, a melodia é de definição exclusiva deles.

Comentários

Anônimo disse…
Texto lindo sem sombra de dúvidas. O filme também é fantástico e merece ser assitido. PS: esse filme me ajudou muito em uma matéria que eu precisava entregar na faculdade!

Aline Barboza