Viajar de férias é regime de exceção. Uma guerra civil contra os hábitos espartanos, em teoria. É a hora em que se perde a vergonha e abrimos mão, inclusive, daquele discurso vida saudável, que sempre chega quilômetros antes da disciplina.
Viajar de férias para um endereço com três refeições diárias garantidas e com mesa farta é ignorar as regras de boa convivência com a comida. Chutar a diabetes para escanteio e mantê-la suspensa, quebrando as normas de saúde pública. O remedinho que simboliza a nova vida sem açúcar vira, automaticamente, regulador de excesso. O único extintor de um prédio em chamas.
No hotel-fazenda, o refeitório é o centro nervoso. A zona mista, a ONU em que convivem grupos diferentes, aliados políticos. Não é necessária diplomacia. O interesse é único: comer. Comer sem controle. Comer sem culpa. Ao menos durante o crime.
O sinal é de fácil percepção. O sujeito caiu de quatro diante da gula quando a vida dele passou a ser pautada pelo horário das refeições.
- O jogo só pode durar uma hora porque depois vem o jantar.
- Estou quebrado, mas levantei cedo para tomar café.
- Não dá para sair da estância agora. O almoço será daqui a duas horas. Não dará tempo de voltar.
A fome entrou para a lista de risco de extinção. Sem TV e com acesso limitado à Internet, comer virou passatempo. Entre os horários das refeições, cantina aberta para os que beliscam. Em certos momentos, o diálogo era inacessível. Apenas grunhidos e resmungos de uma boca cheia. Chicletes, bombons, paçoquinhas, difícil detectar o que os hóspedes mastigavam. A prova era a embalagem nas mãos.
Na cantina, as desculpinhas. O capuccino para esquentar do frio. O cafezinho com bolo para descer a comida.
Na estância, a gula quase virou uma religião. Os demais pecados ficaram sem trabalho. Meros figurantes de um prazer mais imediato, que se pode medir pelos olhos. Boca é apenas um funcionário servil da linha de produção.
Muitos hóspedes abriram mão da vaidade. As reclamações sobre o regime de engorda eram poucas e inúteis, inclusive para quem se queixava, que descartava as próprias palavras. Qualquer crise de consciência desaparecia com a entrada no refeitório. E roupas largas se multiplicavam para esconder a metamorfose.
A inveja do prato alheio nunca existiu. A fartura provocava somente admiração. Elogiar as saladas, para manter a pose, enquanto se devorava as massas ou as carnes era exercício autorizado. Só faltou o carimbo do cartório. Um pacto de descontrole dos cinco sentidos, sem saber quem prevalecia na hora de repetir a sobremesa.
O refeitório era o paraíso. Ali, sorrisos e momentos de felicidade. Não vi ninguém acometido pela ira. Se um sujeito estava nervoso, certamente trocava a pescaria pelos peixes na mesa principal. O calmante estava ali, ao alcance do garfo.
A preguiça era o passo a seguir. Com uma hora para almoço e outros 60 minutos para o jantar, as trajetórias dos hóspedes eram apressadas. Não se tratava de perder o horário, mas de ter tempo para saborear saladas, pratos principais e sobremesa. Não exatamente nesta ordem. Com espaço para respiração e alguma conversa.
A soberba morreu. Ninguém se sentia superior ao cardápio. Ou apontava que o da mamãe era melhor. Ou reclamava ao chef que faltara algum ingrediente. Todos eram irmãos e dividiam os alimentos fartos sem premeditação.
A luxúria, no máximo, sobreviveria no abstrato, na simbólica relação com a comida. Mas ali não havia interesse em procurar pontos de fetiche. Todos comportados, discretos, sem exageros de movimentos. De movimentos. Almoçar e jantar eram assuntos de família. Excetuando-se o tamanho do prato a ser desbravado, prevalecia o politicamente correto.
Confesso que, no último dia, senti a barriga roncar. Estranhei a sensação enquanto caminhava pelo salão de jogos. O jogo de futebol havia sido no dia anterior. Os gastos foram devidamente repostos no jantar.
A segunda roncada puxou a memória. Naquele dia, cometi a heresia de trocar o café da manhã pelo sono prolongado.
A gula, naquela semana em Atibaia, respondia sozinha (e soberana) pelos sete pecados, pelo menos três vezes ao dia.
Viajar de férias para um endereço com três refeições diárias garantidas e com mesa farta é ignorar as regras de boa convivência com a comida. Chutar a diabetes para escanteio e mantê-la suspensa, quebrando as normas de saúde pública. O remedinho que simboliza a nova vida sem açúcar vira, automaticamente, regulador de excesso. O único extintor de um prédio em chamas.
No hotel-fazenda, o refeitório é o centro nervoso. A zona mista, a ONU em que convivem grupos diferentes, aliados políticos. Não é necessária diplomacia. O interesse é único: comer. Comer sem controle. Comer sem culpa. Ao menos durante o crime.
O sinal é de fácil percepção. O sujeito caiu de quatro diante da gula quando a vida dele passou a ser pautada pelo horário das refeições.
- O jogo só pode durar uma hora porque depois vem o jantar.
- Estou quebrado, mas levantei cedo para tomar café.
- Não dá para sair da estância agora. O almoço será daqui a duas horas. Não dará tempo de voltar.
A fome entrou para a lista de risco de extinção. Sem TV e com acesso limitado à Internet, comer virou passatempo. Entre os horários das refeições, cantina aberta para os que beliscam. Em certos momentos, o diálogo era inacessível. Apenas grunhidos e resmungos de uma boca cheia. Chicletes, bombons, paçoquinhas, difícil detectar o que os hóspedes mastigavam. A prova era a embalagem nas mãos.
Na cantina, as desculpinhas. O capuccino para esquentar do frio. O cafezinho com bolo para descer a comida.
Na estância, a gula quase virou uma religião. Os demais pecados ficaram sem trabalho. Meros figurantes de um prazer mais imediato, que se pode medir pelos olhos. Boca é apenas um funcionário servil da linha de produção.
Muitos hóspedes abriram mão da vaidade. As reclamações sobre o regime de engorda eram poucas e inúteis, inclusive para quem se queixava, que descartava as próprias palavras. Qualquer crise de consciência desaparecia com a entrada no refeitório. E roupas largas se multiplicavam para esconder a metamorfose.
A inveja do prato alheio nunca existiu. A fartura provocava somente admiração. Elogiar as saladas, para manter a pose, enquanto se devorava as massas ou as carnes era exercício autorizado. Só faltou o carimbo do cartório. Um pacto de descontrole dos cinco sentidos, sem saber quem prevalecia na hora de repetir a sobremesa.
O refeitório era o paraíso. Ali, sorrisos e momentos de felicidade. Não vi ninguém acometido pela ira. Se um sujeito estava nervoso, certamente trocava a pescaria pelos peixes na mesa principal. O calmante estava ali, ao alcance do garfo.
A preguiça era o passo a seguir. Com uma hora para almoço e outros 60 minutos para o jantar, as trajetórias dos hóspedes eram apressadas. Não se tratava de perder o horário, mas de ter tempo para saborear saladas, pratos principais e sobremesa. Não exatamente nesta ordem. Com espaço para respiração e alguma conversa.
A soberba morreu. Ninguém se sentia superior ao cardápio. Ou apontava que o da mamãe era melhor. Ou reclamava ao chef que faltara algum ingrediente. Todos eram irmãos e dividiam os alimentos fartos sem premeditação.
A luxúria, no máximo, sobreviveria no abstrato, na simbólica relação com a comida. Mas ali não havia interesse em procurar pontos de fetiche. Todos comportados, discretos, sem exageros de movimentos. De movimentos. Almoçar e jantar eram assuntos de família. Excetuando-se o tamanho do prato a ser desbravado, prevalecia o politicamente correto.
Confesso que, no último dia, senti a barriga roncar. Estranhei a sensação enquanto caminhava pelo salão de jogos. O jogo de futebol havia sido no dia anterior. Os gastos foram devidamente repostos no jantar.
A segunda roncada puxou a memória. Naquele dia, cometi a heresia de trocar o café da manhã pelo sono prolongado.
A gula, naquela semana em Atibaia, respondia sozinha (e soberana) pelos sete pecados, pelo menos três vezes ao dia.
Comentários
Sem culpas, remorsos e nem mesmo ficar vermelho....rs
Apenas e tão somente o que se quer!!!
Somos obrigados a lidar com tantos nãos e tantas limitações de horários, disponibilidade que até mesmo passar "fome" é a opção que se desejou....rs
Acorda....volta ao batente em dias!!!
Adorei o texto.