O jamaicano e o falso dono da avenida



Promessas, em ano eleitoral, nascem mortas, para serem esquecidas com um rosto de natureza morta. É aquela cara que políticos fazem quando cobrados sobre o que disseram ou escreveram, embora muitos deles apelem para a eterna expressão de surpresa. Não sabe o que é a expressão de surpresa? Pense no garoto do filme Esqueceram de Mim, por exemplo.

Não costumo cumprir prazos. Sou desorganizado. Mas cumpro promessas, até porque não concorro a nada. Mal venço a mim mesmo, quanto mais outros adversários. Na semana passada, prometi a uma aluna que compraria uma daquelas pulseiras com as cores da Jamaica.

A promessa foi fruto de uma conversa sem rumo ou futuro em sala de aula. Alguém – que obviamente se esquivou de prometer qualquer coisa – disse que uma pulseira assim não pode ser comprada. É presente. Para dar sorte. A quem recebe, é claro.

Ontem, visitei duas vezes a avenida Paulista, meu lugar preferido de São Paulo. Tenho a impressão de que a avenida traduz a vida cultural da cidade – único motivo para que eu a visite – e simboliza o ar cosmopolita de um espaço que abriga diversos tipos humanos.

A avenida Paulista passou uma tarde de sensações distintas, de um tempo desorganizado, porém previsível. Em dia de estréia do Brasil na Copa do Mundo, a avenida mudou de cenário conforme a temperatura que cercava a partida. Tornou-se, no começo da tarde, o corredor dos apressados. Todos apreensivos para chegar em casa ou em algum ponto confortável (botecos?) para acompanhar o jogo contra a Coréia do Norte.

Andava por ela da forma que mais me interessa. Sem correria, com tempo para observar lugares e pessoas. A Paulista, assim como a praça da Sé, significa o Brasil na sua complexidade. O olhar lento e preguiçoso que permite escolher, com a devida calma, o lugar para almoçar, ainda que resultasse na praça de alimentação de sempre.

Enquanto decidia o que comer, cruzei duas vezes com um senhor cinqüentão, jamaicano da gema, não de nascimento, mas de adoção. O retrato do estereótipo Bob Marley da cultura pop. Cabelos rastafári, postura zen, sorriso no rosto, serenidade na fala, desapego material, discurso paz e amor.

Na primeira vez, trocamos sorrisos, de vendedor e potencial cliente, mas eu estava em movimento e em uma fase mão de vaca. Não reparei no que ele vendia. Apenas fui simpático. Na volta, ele vendia o que eu precisava: pulseiras. Claro, pulseiras nas cores verde, amarelo e vermelho, ligadas à cultura da Jamaica. Nada como a lembrança de uma promessa sem demasiado esforço.

Em 30 segundos, fechamos negócio. Mercadoria no bolso da camisa do comprador, dinheiro na mão do jamaicano. Aí, ele viu um livro em minha mão. Uma obra sobre educação, ainda sem opinião definida do leitor. O senhor-Jamaica olhou para mim e disse:

- Eu gosto de ler.

Surpreso, respondi de maneira polida, com um ridículo clichê distorcido.

- Ler abre a mente. Abre a cabeça para o mundo.

Ele tomou o livro de minhas mãos e observou atentamente a capa. Comentou amenidades. Até que olhou para a multidão em velocidade, fugindo para a frente da TV. Virou-se para mim e falou:

- Pena que as pessoas não sabem o que fazer com o que lêem. Não sabem o que fazer com elas mesmas.

Quando se testemunha um instante de sabedoria, tão raro numa sociedade que ama tagarelar, a obrigação do interlocutor é ficar em silêncio. Mudo e sorridente, agradeci com a cabeça e segui pela avenida Paulista.

Três horas depois, retornei a uma avenida com clima de cidade do interior. Vazia, silenciosa, convidativa e tentadora. A tentação de poder de quem, diante da imponência dos prédios-reino das finanças, se sentiu, de forma ingênua, o dono da avenida por um singelo momento.

Presenciar a avenida sem gente é previsível e, ao mesmo tempo, inusitado para quem a visita e a vê dominada pelos passos apressados, controladora pelo progresso sem limites. A avenida Paulista sem gente não é ela mesma. É apenas um lampejo de quem está viciada em pessoas para sobreviver, para respirar. Desejamos vê-la livre da paranóia urbana, mas queremos aquela cultura pulsante que a faz o que é, que a identifica todos os dias.

Pensei, como um crente nas ilusões, que veria outra vez o senhor jamaicano. Sem a ditadura da velocidade, poderíamos compartilhar novo exercício da filosofia de calçadão. É claro que ele não estava lá. É provável que tenha seguido para outro lugar a fim de acompanhar a partida do Brasil. Prefiro acreditar que não. Os sábios sabem escolher as batalhas.

A promessa foi cumprida mais tarde, à noite. A garota crê que terá sorte. Mal sabe ela que a sorte nasceu no ato da compra da pulseira, na breve conversa com que enxerga a vida com olhos de paz.

Comentários

MO disse…
Grande Marcos... Cacete, vem na Paulista e não liga pro amigo?

Detalhe: a bandeira da Jamaica não tem a cor vermelha. Ela é preta, amarela e verde. A combinação vermelha, verde e amarela está presente na maioria das bandeiras africanas e tem a ver com o pan-africanismo.

Um abraço,

Zoyd
Zoyd, obrigado pela informação correta. O erro já foi corrigido. Grande abraço!!
Anônimo disse…
BELA SACADA PROFESSOR, ESPERO ALGUM DIA TÊR ESTE SENSO DE PERCEBER AS PECULIARIDADES DA VIDA E PODER ESCREVE-LAS.
Anônimo disse…
Novamente um texto muito sensível.
Me lembrou o livro Bleckaut, não na poesia, mas na situação...
Parabéns!!
Unknown disse…
A avenida Paulista realmente simboliza muita coisa e leva sim às divagações das mais diversas. Mas certamente seu texto foi inspirado "pelas vibrações de Jah"!! Preconceito nosso a gente achar que essa turma apenas usa as cores, e é caracterizada pelo cigarro do capeta...rs
É toda uma filosofia a ser respeitada e até mesmo pensada!!!
GRande sacada!!! Parabéns
Dennis Calçada disse…
Que texto agradável. Parabéns!!!

Tenho essa mesma ideia sobre a Paulista. Gosto também desse contraste...andar devagar, apreciando, "saborando" as peculiaridas dessa avenida que está sempre acelerada.