Demônios, não é pessoal!

Sou um leitor assíduo de blogs. Visito muitos deles diariamente. Acredito, como um religioso e sua fé, que a opinião (não o achismo) e a informação segmentada me ajudam a compreender o que passa no cotidiano. A necessidade de saber é obsessiva, eu diria. A velha máxima de entender onde estou e se é possível prever para onde caminharei. Parte das perguntas que me leva a buscar histórias e saboreá-las nas relações com outras pessoas. E – quem sabe? – sentir que driblei a manipulação, no sentido perverso da palavra.

Outra razão (a menos racional, o que pode ser ótimo) é o gosto pelo bom texto, pelo cuidado apurado com o estilo da escrita e o uso das palavras. Sou apaixonado por elas. As palavras têm peso e direção. Nenhuma delas é emitida à toa, ao sabor do vento. Escolhemos o que dizer, mesmo que se negue ou se arrependa do que foi dito.

As palavras podem seguir a correnteza, mas – juntas – podem nos empurrar cachoeira abaixo. Palavras são neutras se estão em celas solitárias. O destino delas é dado por nós, quando as escolhemos e as unimos, seja para confortar, seja para ferir.

Penso na força das palavras quando observo reações de intolerância e até de virulência na Internet. Não me refiro às questões comportamentais de fundo sexual, como a pedofilia e o sexismo, ou étnico, como o racismo. Sinto uma sensação de estranheza quando leio as postagens de leitores em muitos blogs. A agressão veste a fantasia do argumento. Fico com a impressão de que ganhamos um brinquedo, mas – como não sabemos manuseá-lo – o usamos no limite da destruição, da quebra. Um teste para todos.



A psicóloga Rosely Sayão, por exemplo, escreveu na última quinta-feira, dia 27, que resolveu retirar de seu blog as entrevistas com convidados. Ela também reclamou das tentativas de muitos leitores em “desqualificá-la” com ataques pessoais. Um dos convidados, depois de falar sobre violência nas escolas, ganhou até comunidade no Orkut com o objetivo de atacá-lo.

Um mês atrás, o jornalista Leonardo Sakamoto, que coordena a ONG Repórter Brasil, também escreveu sobre os comentários de seus leitores, com foco naqueles que o atacavam. Neste caso, a reação do autor do blog foi de ironia com os carrascos.

Tenho um blog há dois anos e meio. Minha vida virtual, em comparação aos casos acima, segue em brancas nuvens. As reações agressivas foram poucas, mesmo em textos mais polêmicos.

Há duas semanas, por exemplo, um leitor me considerou doente e depressivo pelo simples fato de que escrevi um texto, em tom negativo, sobre os sete jogadores da lista de espera para a Copa do Mundo. Tive a sorte de que outros leitores saíram em minha defesa.

No caso do futebol, é comum muitos leitores associarem a preferência de time do autor com as informações que ele divulga em seu blog. È uma simbiose digna de conspiração. Como se um corintianos não pudesse analisar o Santos ou um são-paulino não pudesse refletir sobre o Palmeiras!

Por que tantas ofensas e ataques pessoais contra os autores que lemos? Por que nos sentimos melindrados ou moralmente ofendidos quando alguém escreve um texto do qual discordamos? Será que somos incapazes que nos mantermos equilibrados no momento de participar de um debate público?



A agressão é a arma dos infantilizados. Muitas vezes, sinto que falta capacidade argumentativa para um debate público. Conversei sobre o assunto com um amigo jornalista, André Rittes. Ele se lembrou da expressão de um intelectual chamado Dionísio da Silva, que chama o problema de “xuxalização” do debate. Isso mesmo! A apresentadora de TV seria símbolo do comportamento infatilizado de um adulto, baseado na ausência de crítica sobre o que se consome (ou se lê, no caso).

Por que infantil? Pela ausência de argumentação, que conduz ao caminho fácil: agredir o outro. Crianças agridem! Crianças batem o pé quando a conversa não as satisfaz. Crianças fazem birra porque não concordam com o que veem. O diálogo, geralmente, é curto e termina em reação explosiva. A criança abandona, vira as costas para o que não entende. Apenas ela?

A falta de ponderação nos debates em blogs indica também a mistura entre o público e privado. É como se o leitor entendesse que assuntos da esfera pública soam como socos desferidos diretamente no rosto dele. É como se o interlocutor associasse tudo diretamente a ele mesmo, num exercício contínuo de egocentrismo.

Numa sociedade que valoriza o individual em detrimento do coletivo, parece natural que um sujeito consiga ler temáticas públicas como exclusivas a ele. O eu em estado próximo do absoluto. O eu que desconsidera a existência do outro, quanto mais os pontos de vista dele.

É evidente que o debate se dá pelo conflito. Mas o choque ocorre no campo da argumentação, das ideias, dos exemplos e dos conceitos. Não se podem entender aspectos abstratos ou análises sobre terceiros como se a conversa com o leitor acontecesse dentro de uma arena.

O individualismo no olhar sobre qualquer texto funciona como combustível para a intolerância. O indivíduo não suporta a existência de um pensamento diferente do dele. Persiste o grau de ameaça, que precisa de exterminada ou reduzida ao nível desprezível. O indivíduo exala insegurança para realimentar, aquecer a conversa. Conforta-se com a distorção da crítica, associada às pauladas. Jamais conecta crítica ao contraponto argumentativo.

Para o intolerante, pior do que pensar diferente é permitir a manifestação deste pensamento. É fácil perceber, no cotidiano, como fugimos da discussão. Batemos boca para encurtar o conflito. Na Internet, por vezes, repetimos o mesmo procedimento. Aquele texto de perspectiva diferente não pode sobreviver. Aquela opinião carece de assassinato. E a única arma possível é levar a imagem do autor ao chão, ainda que apelando para a leviandade ou perversidade das palavras.



Erramos e acertamos ao considerar a Internet um símbolo da liberdade. Os blogs e as redes sociais permitem romper com as algemas das grandes corporações que lutam para controlar a informação e reconstruir a mentalidade de seu público. Blogs e redes podem ser o remédio para a formação do gosto único, do pensamento uniforme.

Rompemos os grilhões, ao menos, em alguns casos. Qualquer cidadão se transformou em produtor de conteúdo. A Internet possibilita a qualquer um expor sentimentos e reflexões, compartilhar valores e experiências.

Só que esta mesma liberdade nos transforma em praticantes da intolerância, da violência gratuita. Ficamos cegos diante da diferença. Reagimos como quem se vê ameaçado. Carregamos para o mundo virtual os obstáculos e a visão obscura de muitos grupos sociais. Não surpreende que busquemos, no mundo virtual, uma idealização de vida, mas que resulta em cenário novo com valores envelhecidos.



A Internet, como qualquer mídia, é – em princípio – neutra. Como tecnologia, nasce inerte. Nós damos vida a ela. Nefasta ou nobre, ela reflete o que pensamos. Nunca devemos demonizá-la, tampouco pendurá-la no altar.

A Internet é o espelho que nos mostra, de maneira crua, quem somos. Os demônios estão em nós e falam pela ponta dos dedos, ao som das teclas do computador.

Comentários

Unknown disse…
Excelente crônica. Por isso alguns cronistas nos premiam com brilhantes textos, temos tb aqueles que são tão vazios quanto são suas vidas e cultura. Traduz-se aqui a realidade!!
Apenas uma poesia para deixar gravada a diferença entre o que é volátil e efêmero do que é real e transformador!!!
"Há pessoas que nos falam e nem as escutamos...
Há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam...
Mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre..."
Cecília Meirelles
Anônimo disse…
Olá Marcus,

Parabéns pelo blog. Gostaria de lhe pedir algumas sugestões de blogs, que tenham a mesma linha do seu, no sentido de intelectualismo público mesmo.
Grato
Deixarei as sugestões aqui neste espaço, até porque o registro da mensagem é anônimo. Sugiro o blog do jornalista Leonardo Sakamoto, hospedado na UOL. Ele é bastante comprometido com questões sociais. Mas "intelectualismo público"? Sei da boa intenção, mas me chamar de intelectual ofende. (risos) Perdoe a brincadeira, mas não gosto da palavra. Sempre me soou pretensiosa. Teimosia minha. Obrigado pela leitura.