Quando os mudos conversam

Texto publicado no jornal Boqueirão (Santos/SP), edição n. 791, página 2, 29 de maio de 2010.

Duas pessoas em um local público ou numa conversa do dia-a-dia. O diálogo seria uma atitude previsível, com troca de experiências, de valores, de percepções de mundo. Se você não é uma delas, basta esticar as orelhas para captar o fenômeno. Ambas falam, gesticulam, contam suas vidas. Ambas fingem esperar uma reação do interlocutor.

O diálogo, muitas vezes, é estéril. Jamais existiu. O que presenciamos são dois monólogos, nos quais o outro sujeito é público, audiência cativa, e não alguém com papel interativo.

O homem atual fala demais. Fala tanto que falseia a necessidade de ser ouvido. Não se trata daquela tia tagarela ou do vizinho para quem não podemos perguntar se está tudo bem. O homem de hoje deseja uma caixa de ressonância, confirmadora de teses, uma cabeça que balance positivamente a cada frase exalada com veemência.

Estamos interessados em ouvir outras pessoas? Realmente nos importamos com aquilo que elas têm a dizer sobre suas rotinas anônimas e ordinárias? Somos capazes de perceber que na fala de nosso interlocutor pode estar o espelho que remediará uma dúvida? Absorvemos detalhes que nos modificam de maneira sutil?

O homem contaminou-se pelo individualismo, que rompe com a comunicação horizontal. A ideia é apenas vomitar o que se pensa. O individualismo nos conduz à insignificância do outro. Testemunho casos em que a outra pessoa poderia ser trocada por um cone, tamanha a irrelevância dela na conversa. Escute e não responda! A história soa como um filme sem áudio, incompreensível aos ouvidos de quem se põe diante da tela.

Quem escuta, nesta visão, não deve falar. Somente reconhece, legitima posições, reforça a vaidade, assegura a permanência da soberba. Ou simplesmente olha para quem deseja ser ouvido, ainda que a mente flutue para outros endereços, pessoas e episódios mais atraentes.

Dois monólogos simultâneos dispensam conflitos. O homem individualista abomina os choques. Quando o encontro se torna inevitável, a saída é armar-se de melindre, entender que as declarações do outro são pessoais; portanto, ofensivas. A preferência pelos monólogos reduz o impacto e a importância do debate, do intercâmbio nas relações mais elementares. Caso haja um debate, pula-se a etapa do diálogo. Direto à discussão!

Ser adepto do monólogo é um exercício de intolerância, que rechaça a opinião alheia, insolente em considerar a chance de alterar a opinião do autor. Teses seriam incontestáveis. As posições, em um monólogo, são definitivas, cristalizadas na boca de quem as expõe com segurança e ar de propriedade. O que o outro tem a dizer é menor, para não dizer irrelevante. A contestação é puro amor ao vazio, incapaz de mudar os pontos de quem comanda a fala.

Sou obcecado pela ideia de ouvir. Entendo como caminho para um lugar onde jamais se sabe quando se chega. A sabedoria implica em valorizar o outro e, como complemento, abrir a boca somente para dizer o que é imprescindível.

Uma amiga, também professora, sempre afirma que um dos males que acometem os docentes é a “professorite”. Esta doença se manifesta com anos de profissão e pode ser diagnosticada apenas pelo sintoma principal. Quando contaminado pela professorite, o paciente nunca mais escuta e pouco fala. O paciente dá aula o tempo todo. Em tom professoral, ele se realimenta do monólogo. Se a platéia o ouve, é mero detalhe. O que mantém o paciente vivo e o enche de prazer é o som da própria voz.

O problema é que a professorite, para os especialistas, representa uma variação de epidemia maior, que não distingue raça, credo, gênero ou classe social. Basta ouvir dois monólogos travestidos de diálogo. Ali, soam como dois mudos impedidos, para vontade própria, de se comunicar. As posições aqui tomadas, leitor, não são definitivas. Devem ser analisadas e contestadas. Caso contrário, este autor engrossaria a estatística da epidemia.

Comentários

edu disse…
É,meu amigo,quando pensamos estar acima de tais coisa, nos enxergamos em algumas delas rsss
Confesso que tento conversar além da minha redoma, mas talvez eu tenha de praticar mais esse altruísmo de ( bom) ouvinte. Acho que já estou com leves sintomas da tal professorite.Adoraria contestar, mas tenho de concordar com tudo que você escreveu, só colocando um adendo, as conversas das pessoas com os celulares ligados, uma olhando pro celular da outra, ou barzinhos em que vemos jovens e singelos casais olhando a paisagem...em silêncio!Por que as pessoas não conseguem viver com elas mesmas, não?
Anderson Caleffi disse…
Grande Professor Marcão.
Ótimo texto.
Realmente essa questão do monólogo é um dos graves problemas da atualidade.
Mais grave ainda é essa "professorite", pois até mesmo o professor deve ouvir seus alunos, e a partir do conhecimento dos mesmos auxiliálos na busca do conhecimento.
Sou testemunah de que você não sofre nem de uma nem de outra. Sorte de seus interlocutores, e principalmente de seus alunos!
Grande abraço
Anônimo disse…
SÓ NÃO ENTENDI UMA COISA ,É PARA FICAR EM SILÊNCIO ?OU FALAR? PORQUE SE FORMOS FALAR, AI CAI NA FRASE QUE O SENHOR MESMO ESCREVEU- Não se trata daquela tia tagarela ou do vizinho para quem não podemos perguntar se está tudo bem-Quando ainda não existia o celular,eu trabalhava em um banco,e sempre havia a tal Professorite ,de como abordar(mas não existia essa palavra,ou ela não era usada) era COMO EMPURRAR A COISA PROS APOSENTADOS.SURGIA O CHEQUE ESPECIAL E ELES VISLUMBRARAM O MAIOR LUCRO DOS LUCROS.E LA VINHAM MEUS VELHINHOS,EU OS AMAVA,E CERCADA DE COLEGAS QUE VESTIAM A CAMISA, EU TENTAVA MEIO QUE QUASE QUE INAUDÍVEL ,PERSUADIR A PESSOA A NÃO ENTRAR NESSA mas todos entraram.Com o tempo, tomei um pé no traseiro.Aqueles velhos conselhos, tudo que eu aprendi estava obsoleto.Hoje eu não sei se eu devo falar porque me lembro numa das reuniões eles dando risada e falando SÓ NÃO PERGUNTEM SE ESTÁ TUDO BEM,KKKKKKKKKK PODE SER QUE A PESSOA QUERIA FALAR...O MUNDO ESTÁ HOSTIL,EU TENHO MEDO,E DE TANTA ANSIEDADE E PAVOR QUEM SE f FUI EU, AGORA ,SÓ EXERCITANDO O LADO ESPIRITUAL, PARA NÃO MORRER LOUCA.