A cor da vida urbana

Quando visitei a cidade de Buenos Aires, capital argentina, em 1999, fiquei encantado pelo Caminito, no bairro da Boca. As moradias, feitas com chapas de antigos navios italianos que aportaram na cidade, tiveram as fachadas pintadas de diversas cores. A mudança sacudiu aquele espaço urbano, ressuscitou as casas com destino à degradação e, obviamente, atraiu a atenção de turistas nacionais e estrangeiros.



Pensei no Caminito quando associei duas situações diferentes na cidade de São Paulo. A primeira é o projeto de demolição do Minhocão, apresentado pela Prefeitura. Ainda bem que a proposta ultrapassou a fronteira das rodas de conversa de arquitetos e urbanistas.

O Minhocão é um dos símbolos do crescimento desordenado de uma cidade grande. Representou uma medida paliativa para uma das piores doenças do meio urbano: o trânsito. Simbolizou o atraso de mentalidade que marca em brasa os políticos, obcecados pela ideia de que progredir é infestar o espaço público de obras enormes. A tradução se dá pela máxima: obra que rende voto deve estar em cima da terra. Algo assim!



Só que o Minhocão foi incorporado à paisagem paulistana. De mancha, virou primeiro plano. O Minhocão é, à maneira dele, um cartão postal que retrata uma época de alterações substanciais no cenário de São Paulo. Era a soberba de alguém que dizia nunca parar.

Na mesma cidade, o arquiteto Marcelo Rosenbaum coordena um projeto de revitalização de uma área, dentro do bairro Capão Redondo. Ele ficou conhecido por trabalhar no quadro Lar doce lar, que revitaliza casas, no programa Caldeirão do Huck, da rede Globo.

O Capão Redondo se notabilizou no noticiário policial, como uma das regiões mais violentas de São Paulo. Anos depois, o bairro ganhou as páginas dos cadernos de Cultura dos jornais pela produção artística alternativa, de resistência. Um centro de literatura, música e artes plásticas.

O projeto de Rosenbaum envolve o Campo do Astro, única área de lazer do bairro. Segundo reportagem de O Estado de S.Paulo, uma fabricante de tintas vai capacitar os moradores, ensiná-los uma profissão e fornecer o material para que eles possam pintar (e colorir, claro) as moradias em torno do Campo. Cada casa será uma tela em branco, a serviço do artista.



Cerca de 30 universitários de cursos de Design e Arquitetura passarão as férias no bairro para orientar os moradores na melhoria do espaço urbano. O trabalho é utilizar as ideias e habilidades da população local para a construção, por exemplo, de parques infantis e floreiras. Auto-estima é a chave do tesouro. O Campo do Astro terá uma biblioteca, com equipamentos audiovisuais. Não há dinheiro público nesta história.

A Prefeitura de São Paulo poderia enxergar o Capão Redondo e pensar no Minhocão. A administração perde mais uma oportunidade de amenizar o cinza que marca boa parte do espaço urbano da capital paulista. Por que não revitalizar o Minhocão? Transformar o local em símbolo de uma produção cultural popular e engajada. A mudança daria cor, traria vida para uma área que marca a decadência e a falta de planejamento urbano.

Muitos artistas estão anos-luz à frente da turma do Kassab. Basta visitar o Minhocão e prestar atenção em suas pilastras. Ali, há dezenas de ilustrações e outras linguagens de interferência no lugar. (abaixo, trabalho do artista gráfico Gen). As obras foram reunidas no blog Minhocão.

É fundamental rediscutir a mentalidade vigente. Vivemos uma época em que soa como natural demolir e reconstruir sem maiores reflexões. Sem análise do contexto, do espaço geográfico. Matamos e damos vida às construções, sem observar (ou a preferência é ignorar) o impacto que elas causarão no cotidiano das pessoas.

Virar as costas para o mundo em volta é assumir-se cego, estúpido ou ingênuo. Pouco se considera a hipótese que alterar um local público é mexer com o comportamento cultural dos moradores, da coletividade. Faltam áreas para manifestações culturais espontâneas, politizadas ou como mero entretenimento, sem o julgo de empresas privadas ou a subvenção de organizações estatais.

O olhar urbano da classe política – e também do mundo empresarial – está contaminado pela ânsia de progresso a qualquer custo e pelo lucro decorrente desta prática. Não se leva em consideração – no espaço público – que lazer é uma necessidade de primeira grandeza. O lazer que pode nos conduzir a uma prática cultural e – quem sabe? – a um novo olhar sobre o universo que nos cerca e nos afeta.

Na concepção atual de cidade, nós não vivemos as áreas públicas. Passamos por elas. Nós nos tornamos escravos de lugares fechados, onde sufocamos a liberdade de pensar coletivamente, de reafirmar as relações humanas além dos círculos habituais.

A cidade é parte de nós, mas a modificamos o tempo todo. A cidade pulsa por meio das pessoas e de suas construções. Os imóveis retratam momentos históricos, indicam os caminhos da vida cotidiana. Pela urbanidade, o homem cria, recria e interage com seus pares. O lugar onde vivemos é uma radiografia de quem somos e como pensamos.

Em Santos, cidade onde nasci e resido, a Prefeitura começou – há mais de uma década –um projeto chamado Alegra Centro, que prevê a revitalização de fachadas do Centro Histórico, em parceria com empresas privadas. Muitos imóveis foram recuperados ou maquiados.

Uma das conseqüências foi a transformação de parte do bairro em pontos de balada para a classe média, no final de semana. O local também atrai turistas durante o dia.

Só que o projeto reduziu a marcha. Por problemas políticos, não houve avanços em direção ao porto. O Alegra Centro também não estendeu seus braços para a região mais pobre da cidade, a poucas quadras dali. Na Vila Nova e no Paquetá, as moradias são cinzas, tristonhas, prova viva do passado de decadência do Centro Histórico.



Nenhuma empresa se interessou em modificar o local. A Prefeitura, ao longo dos anos, vestiu o tapa-olho. Os dois bairros, a menos de um quilômetro da badalação, apresentam os piores indicadores sociais de Santos.

No momento, o ouro são os espigões que se espalham pelo município (cerca de 60), símbolos do canto da sereia pelos royalties do petróleo. Santos dá as mãos a São Paulo e ambas desprezam a urbanidade como característica da cultura humana. Ambas são seduzidas e reproduzem – na visão de seus políticos – a ferocidade pelo progresso a partir da via mais acelerada e corrosiva.

Por trás da roupa colorida, será que somos amargos como o Minhocão e o velho de Porto de Santos? Ou somos repletos de cores, vivos, pulsantes e dinâmicos, perspectiva oposta a dos administradores públicos? Os moradores do caso do Capão Redondo indicam a porta de entrada, ao caminharem sozinhos, sem esperar por alguém que nunca os verá.

Comentários

joão thiago disse…
o pátio de caminhões da empresa em que trabalho é logo atrás de onde será o museu pelé. Agora, qualquer coisa é motivo para a prefeitura querer desalojar as empresas do centro. Será que, ao invés de fazer isso, não seria interessante buscar outros espaços públicos no próprio centro? Como você mesmo disse, Paquetá, por exemplo, está à míngua. entre viadutos, espigões, perimetrais e VLTs, será que o cidadão santista poderá trabalhar e viver em paz?