Chico Xavier, um filme para recomeçar



Assisti essa semana ao filme Chico Xavier, dirigido por Daniel Filho. Pela segunda semana consecutiva, estava sozinho na sala de cinema. Desta vez, estar só foi fundamental para refletir e absorver as mensagens nas entrelinhas. O ambiente, que poderia ser favorável mesmo com companhia, me deixou mais confortável para metabolizar a proposta da história. É um filme de entretenimento, um blockbuster nacional, mas isso não implica na inviabilidade reflexiva dele.

Chico Xavier foi produzido – como qualquer filme comercial - para diversão, mas provoca múltiplos sentimentos e exige uma análise posterior. De cara, torna a obra relevante. Não se passa ileso aos diversos personagens e, principalmente, à vida do principal médium brasileiro. Ou melhor: a vida dele por meio de seus significados.

Chico Xavier representa, a partir de minha leitura emocional, um filme sobre recomeço. Em vários níveis. O ato de recomeçar envolve os principais personagens da trama. Chico, antes de qualquer outro, é um sujeito que recomeça sempre. Por pressão de terceiros ou por ação voluntária. Ele recomeça a cada atendimento, a cada absorção de conquistas e tragédias.

O filme não é um tributo ao espiritismo ou um meio de pregação de doutrina. È parte da biografia de um homem cercado de lendas, desconfianças, ignorância, preconceitos e incertezas. A história acompanha Chico até 1975, ano em que foi sabatinado no programa Pinga-Fogo, atração de grande audiência na extinta TV Tupi.

O roteiro divide a vida do médium em três partes. Na infância, ele é interpretado por Matheus Costa. Na juventude, por Ângelo Antônio, ator amadurecido, que transmite serenidade e poesia na interpretação. Antônio imprime um tom emocional ao personagem, em seus arroubos juvenis e na angústia de atender expectativas, enquanto Nelson Xavier cristaliza a maturidade e sabedoria de Chico. A calma de quem entendeu o próprio lugar e os próprios limites no espaço.



Nelson Xavier, por sinal, é a encarnação física do médium. Nelson é conhecido pelas atuações cerebrais, calculadas em detalhes, como admitiu o próprio ator no programa Marília Gabriela Entrevista, no canal GNT. Nelson se confunde com Chico nos pormenores, como o jeito de falar, os maneirismos, a tranqüilidade no trato com as pessoas, mesmo quando pressionado pelos interlocutores, como no programa de TV Pinga-Fogo.



A equipe do diretor Daniel Filho montou um elenco de primeira linha, alguns com interpretações tocantes. Luis Melo é o pai de Chico Xavier. Homem trabalhador, com 13filhos, o personagem de Melo não aceita a mediunidade. É um sujeito religioso, porém racional e preconceituoso. Não o entenda como vilão, apenas como um pai que lutava para criar e reunir todos os filhos em volta de si. É também uma pessoa que se torna obstáculo para si, quando tenta entender o dom que o filho carrega, mas não aceita a condição dele.



Tony Ramos é o produtor de TV. Trabalha no programa Pinga-Fogo. Casado com a personagem de Cristiane Torloni, ele passou a ser um descrente após a morte do filho em um acidente com arma de fogo. O personagem de Tony não consegue recomeçar. Ele está mergulhado no rancor contra um alvo indefinido. Como muitos, utiliza o trabalho como válvula de escape e se afasta da esposa.

Cristiane Torloni faz um papel que remete à vida pessoal da atriz, que também perdeu um filho. A atuação dela é visceral, sensível, dolorida. A personagem joga no nosso colo a responsabilidade de dividir com ela a perda do filho. É a mãe que persegue algo, sem saber exatamente o quê, pela chance de reencontrar o tempo, perdido junto com o filho que se foi.



Ela persegue um canal de comunicação com o adolescente, e Chico Xavier traduz a última tentativa de remediar a dor ou ultrapassar a fase de luto.

Chico Xavier é um filme que tem como maior mérito nos fazer lidar com a nossa própria humanidade. Os personagens não soam artificiais. Seus dramas são comuns na dose exata para nos colocar como espelhos da obra. É como se todos tivéssemos contas pendentes, relembradas e remexidas em pontos específicos da história.

Chico, como personagem e como médium, nos lembra que sempre é possível – e necessário – descer do pedestal e retomar o diálogo com outro. Não falo do além. Estou me referindo aos relacionamentos em vida. Viramos as costas para o outro por orgulho, soberba, vaidade, rancor, ou intolerância. Não importa o sentimento.



Às vezes, deixamos de recomeçar e nos agarramos no passado pelo pacote completo. Paralisamos para ter razão. Paralisamos para confirmar teses inócuas ou obsoletas no nascedouro. O resultado é a recusa em alterar o caminho, ainda que tenhamos clareza de que o final será um beco sem saída. Bate-se com a face no muro para não encarar o outro por uma perspectiva horizontal.

Chico Xavier, o filme e o personagem, me atingiu como uma bala no meio do peito. Encaro um período de recomeço. Tive que mudar – e contei com outras pessoas como guias -, rever valores, ler o mundo de outra maneira. Os erros serviram como fonte de reflexão para seguir outros caminhos. E também como indicativo de que a repetição deles deve ser evitada.

Recomeçar – e o filme funciona como elemento de confirmação - é enterrar o passado. O sepultamento não significa esquecer tudo o que se passou, mas colocar os fatos na dimensão adequada de tempo e espaço. Neste sentido, não importa a profundidade da cova. Uma cova rasa basta, desde que a terra não seja remexida. Podemos até cultivá-la, mas com outras flores. E jamais exumar o corpo sob pena de comprometer uma evolução individual.

Quem decide recomeçar o faz porque perdeu, está perdendo ou perderá algo ou alguém. Nunca é uma ação em tempos de calmaria. O recomeço, como as pessoas que procuravam Chico Xavier, começa no meio da tempestade. Para sair dela, muda a rota. Se for o caso, troca-se o plano de viagem e a tripulação.

O filme é, acima de tudo, a história de um homem que vivenciou com letras garrafais o maior sentido do termo humanidade. Vejo como óbvio qualificá-lo de generoso. Chico era bondoso, com um ouvido do tamanho do mundo, mas também tinha consciência plena de seu papel social, ainda que seguir implicasse sacrifícios individuais.

Chico se sacrificou porque talvez soubesse que poderia recomeçar sempre, até porque a sabedoria lhe deu a convicção de que o caminho a ser percorrido é o coração da viagem. Suas atitudes alteraram milhares de vidas, mas redesenharam com poesia – principalmente – a dele.

Comentários

Paty disse…
Muito bacana a sua análise! E também gostei do filme. As atuações tocantes comovem até mesmo o espectador mais insensível. Todos saem do cinema refletindo sobre o que acabaram de ver... Abs!
Anônimo disse…
Marcus Vinicius,
Lendo seu texto entrei em profunda emoção. Parabéns, você superou minhas expectativas. Talvez estivesse mais sensível. Quando assisti ao filme isto não aconteceu, apesar de ter amado o filme. Atualmente, estou lendo o livro As Vidas de Chico Xavier. A cada página me surpreendo com a dimensão humana daquele homem real e ao mesmo tempo tão frágil. A cada história colocada, enxergo a lucidez com que Chico Xavier apregoava a humildade, a paciência, e o perdão para chegarmos à evolução espiritual. Nas entrelinhas ele deixa nítido que muitas vezes precisamos pegar um atalho, buscando fôlego para melhorar nossas vidas. Tentar ser mais humano, repensar nossos valores para recomeçarmos. No livro ele fala muito em ter calma. Cita a frase feita: “Em tempo de tempestade a ave não muda de ninho”. A calma é o diferencial para o recomeçar que você fala em seu texto. Com calma e paciência descobrimos que somos capazes de ir muito mais além.
Beijos. Zuleica.
Mariana Pereira disse…
Olá professor.

Assisti ao filme há algumas semanas atrás. Talvez três. A minha interpretação não foi exatamente a de recomeço, mas agora que você escreveu, isso fez sentido. Muito sentido. Quando saí do cinema, fiquei pensando no quanto as situações que vivemos nos ensinam e como não podemos deixar os obstáculos fazerem de nós pessoas que não somos. O que importa é erguer a cabeça sempre e seguir em frente.
Também fui ao cinema sozinha duas vezes na última semana. A primeira para ver "Os homens que não amavam as mulheres", adaptação da trilogia do autor sueco Stieg Larsson. Sou um pouco viciada na história e tive que conferir o filme. Adorei. A segunda vez que eu fui ao cinema foi para ver "Querido John". Bem água com açúcar, mas muito bonito. Vale a pena.

Abraços.
Anônimo disse…
-Pela segunda semana consecutiva, estava sozinho na sala de cinema. Desta vez, estar só foi fundamental para refletir e absorver as mensagens nas entrelinhas (SUAS PALAVRAS) E
Foi fundamental para mim ,ler sua análise ,foi assistir ao filme pela segunda vêz, também sózinha, e pude chorar e entender algo que me causa mêdo ,mas para você eu vou contar,eu sinto que a tragetória de minha vida ta no fim. Voce esqueceu de contar o lado ilário dele, com a peruca...Se eu pudesse te confessar quantas vêzes repeti palavras infame para não gostar daquela peruca...Foi quando eu mais chorei.
Você é uma pessoa que precisaria estar na mídia ,é um formador de opinião.Chove muito em São Paulo,ta frio,meu corpo inteiro doi e eu choro como nunca porque estou numa fase terrivel de RECOMEÇO.Estarei colocando todo seu tópico com os créditos é claro sobre o filme porque se a gente coloca ali um link para a pessoa abrir ninguiém abre para ler tem medo de ser víris e a sua análise deste filme vem acrescentar e abrilhantar e fazer deste homem a pessoa mais bela e boa que caminhou nesta terra.