Um domingo de velório



A menina de sete anos presenciava o ritual pela primeira vez. Havia feito um pedido para que o pai a levasse lá. Queria testemunhar de perto tudo o que vira pela TV. Entrou no velório com ansiedade. Estava fascinada. Tinha polícia, bastante gente. Depois, fiquei sabendo que eram 616 presentes. Até vendiam água e pipoca. Sabia que o pai não recusaria o pedido de pipoca. Se o passeio ficasse chato, pegava emprestado o bloquinho e a caneta do pai. Ela poderia desenhar caso estivesse cansada da cerimônia.

O público estava desconfiado, ligeiramente tenso. O cheiro de esperança prevalecia, o que indicava a espera por um milagre. Quem sabe o caminho da ressurreição? Mas havia a dependência de outros endereços, de outras pessoas. Quando não é possível depender apenas de si, ainda que floresça o esforço único, aguarda-se pelo sobrenatural, apela-se para superstição, acendem-se velas de todas as cores.

A menina torce para o Santos, mas entendeu que tinha que emprestar a voz para a Portuguesa Santista. Berrou algumas vezes. Parou quando viu que não dava resultado. A Portuguesa Santista precisava vencer o Força, em casa, e rezar para derrotas de dois dos três concorrentes diretos: Itapirense, Batatais e Barueri. Nomes que jamais figuraram na história da Briosa, mas a tradição não era pré-requisito para o domingo passado. O fundo do poço não escolhe camisa. As manchas nascem para todos que insistem nos pecados.

O tempo nublado e a timidez dos torcedores eram sinais claros de um ar de velório, ao lado da Santa Casa de Santos. Não havia choro ou defunto à mostra. Somente lamentações diante de pior fase de uma vida. O rebaixamento para a quarta divisão do Campeonato Paulista soava nítido como os tambores e os gritos de uma parte pequena dos torcedores, sonhadores por dias melhores e pela aproximação de um passado de destaque. Qualquer curandeiro notaria a combinação dos sintomas. O sonho era a manifestação mais aguda de uma doença chamada utopia.

A partida elevava a dor e cultivava a humilhação. Cada chutão sem consciência testava o amor pela Briosa. A bola era a maior uma vítima do nervosismo, do medo, do gosto do fracasso e da qualidade mínima. A bola, coitada, parecia viajar mais tempo no ar do que permanecer grudada nos pés dos coadjuvantes. Protagonista não era um papel necessário. Quem assumiria a responsabilidade de alterar um destino desenhado há cinco anos e cumprido à risca até o momento?

Os goleiros, por exemplo, deveriam ser cobrados em R$ 10. O preço do ingresso, sem direito à meia-entrada. Mal sujaram o uniforme e assistiam passivos ao choque de pernas na intermediária do campo. Os atacantes da Portuguesa apanharam como se tivessem feito algo errado. Talvez punidos pela baixa produtividade ao longo do campeonato.

Nas arquibancadas, torcedores permaneciam sentados. Calados. Resignados. Ex-jogadores também estavam lá. Eles desmentiam os místicos e os historiadores. Nenhum deles poderia influenciar naquele ritual sofrido. Nem o capitão do time que subiu à Primeira Divisão, que permanecia discreto, quase no anonimato.

A Portuguesa Santista venceu por 1 a 0. Gol de pênalti. Talvez a maneira menos emocionante e óbvia de marcar. O otimista poderia dizer que o time cumpriu a obrigação. O pessimista também, com uma dose sutil de sarcasmo.

A Briosa morreu abraçada com o Força. Depois do jogo, uma combinação de suor, lama e alguma choradeira. Não me comovi. A bravura me pareceu reação de quem andava rumo à forca. Não senti alma que negasse a falta de planejamento e de qualidade de uma equipe composta – quase na totalidade – por andarilhos. Jogadores que pulam de estádio em estádio e seguem a vida melancólica das partidas sem glamour. Não tiveram o que havia no nome do adversário.



Ao lado do estádio, um circo, chamado O Mundo de Fantasia de Beto Pinheiro, ironizava o enterro simbólico. O nome do circo é genérico mesmo, assim como o futebol daquela manhã de domingo. A diferença é que o circo pode aguçar a fantasia e aliviar os males da alma, nem que seja por instantes. No estádio Ulrico Mursa, a tristeza de uma história atirada ao lixo, como um palhaço que perde o picadeiro, o prazer de rir e a própria identidade.

A menina de sete anos ainda cultiva a ingenuidade do universo infantil. Adorou o jogo! À tarde, a mãe perguntou se a menina assistiria a Santos e São Paulo pela TV. A resposta foi direta:

- Não vejo mais jogo pela televisão. É chato.

O mundo da imaginação, estampado nos desenhos do bloquinho, aliviou o tédio e alimentou o amor pelo futebol. A menina ficará adulta e poderá escolher melhor as companhias e os lugares para se divertir. Fico feliz que ela sequer notou que estava em uma cerimônia fúnebre. Não sou estraga-prazeres.

Observação: Este texto também foi publicado, em 18 de abril, no blog do escritor José Roberto Torero, no portal UOL.

Comentários

Anônimo disse…
De quem são as belas fotos publicadas?
Por que não dá o crédito ao autor, é voce mesmo?
Muito obrigado
abraços
Murilo