O último gol do poeta (Contracapa # 9)




“Se Pelé não fosse homem, seria bola.”

A crônica esportiva, tão castigada por merchandisings e comentaristas de boteco, perdeu um poeta. A morte de Armando Nogueira, aos 83 anos, vítima de câncer, machucou o texto, feriu o olhar clínico de quem lê o jogo de futebol como os craques que desfilam sobre travas. O futebol terá menos romance e pureza nas palavras publicadas no dia seguinte ao espetáculo.

O cronista está sempre sozinho. É, na verdade, um sujeito meio esquisito, incompreendido quando se chega perto, que produz seus textos em um ritmo e ordem pouco convencionais. Como se estivesse solto no centro do campo, girando o corpo 360 graus e observando um estádio vazio. O jogo é, por vezes, mera desculpa para falar do mundo de uma forma que nos surpreende.

O cronista engana o leitor, que olha, olha, olha e se rende à impossibilidade de apanhar ou alcançar aquele movimento, aquele lance dentro de uma partida. Ele nos coloca no devido lugar de espectador e nos estampa a vergonha da obviedade, pelos comentários pregados nos balcões de padarias, pontos de ônibus e mesinhas de bar.

É o cronista quem nos convence de que o texto publicado significa a palavra definitiva e incontestável sobre o aconteceu no dia anterior. O texto de Armando Nogueira só aceitava a confiança cega de quem o lia. Confiança cega no parecer do sábio, capaz de resumir em verbos, conjunções, preposições, substantivos, adjetivos e advérbios a história que não queria ser contada. A história que segue escondida nas sombras dos corpos dos jogadores.

“Ademir da Guia tem nome, sobrenome e futebol de craque.”

Armando Nogueira traduzia o futebol pelas entrelinhas, pelos detalhes, pelos ângulos que muitos repórteres sequer sabiam da existência. O texto poético não tinha compromisso com a velocidade dos fatos. Isso ficava para os jornalistas comuns, atrapalhados entre cafés, cigarros e anotações.

Armando era o Millor Fernandes do futebol. Suas frases se tornaram armas de nostalgia para um futebol que só se vê eventualmente, com times formados ao acaso, como o Santos de Neymar e Ganso. O cronista adotado pelo Rio de Janeiro lamentaria não acompanhar o que esses moleques, rompedores da disciplina endurecida, poderão fazer pela arte. Terá que se contentar com a distância que a vida lhe deu.

“Para Garrincha, a superfície de um lenço era um latifúndio.”

O jornalista nascido no Acre parecia uma mulher quando escrevia. Não era fragilidade, argumento instantâneo dos machistas. Armando conseguia visualizar uma partida com tamanha sensibilidade. Ele descartava a brutalidade do jogo de pernas e o choque entre corpos. Enxergava no gramado uma dança, leve e pesada, amorosa e cruel, limpa e encardida, ao mesmo tempo. A trilha sonora poderia ser uma sinfonia ou uma valsa, que serviria como cereja do bolo.

Armando Nogueira estava no jornalismo desde 1950. Criou programas como Jornal Nacional e Globo Repórter e cobriu todas as Copas do Mundo desde 1954, e todos os Jogos Olímpicos desde 1980.

Como todo poeta, Armando Nogueira transgrediu ou cometeu pecados. Ele, como reconheceu, errou ao ser voto vencido na edição do debate entre Lula e Collor, na rede Globo, em 1989. Não fez a pressão condizente com o cargo que ocupava na emissora. Ali, talvez tenha sido o momento em que o jornalista vestiu a roupa de cronista. Talvez para se proteger da decepção diante de um jornalismo rasteiro e compromissado com o poder.

“Deus castiga quem o craque fustiga.”

Com sua morte, o jornalismo esportivo empobreceu. A palavra enfraqueceu. Ficaram poucos menestréis para desafogar uma cobertura jornalística industrial, de polêmicas fáceis e efêmeras, pressionada por estratégias de marketing e contratos comerciais.
Armando Nogueira errou em análises, falhou em previsões, mas jamais abriu mão da qualidade de um texto, que prendia os olhos e as mãos de quem começava a ler as crônicas dele nos jornais. Era a poesia que faria o leitor queimar as torradas, frase clássica do jornalismo.

Os cronistas-poetas entraram para a lista de espécie em risco de extinção. Sobraram Tostão, Luiz Fernando Veríssimo e mais alguns cronistas que ainda flutuam quando testemunham um jogo de futebol. Sem Armando Nogueira, este time ficou mais fraco, menos lúcido e taticamente vulnerável. Com eles, o jogo nunca terminará em empate sem gols, parafraseando o poeta.

Comentários

Anônimo disse…
LInda homenagem, mas não ficaram órfãos apenas os crônistas esportivos, mas muitos jornalistas que beberam de sua sabedoria e timing para a notícia e principalmente ao garimpar entre estudantes e estagiários grandes feras do jornalismo atual. Infelizmente o capital sempre acaba tropeçando nos ideais, mas não chega a ser nenhuma mancha em seu extenso currículo!!! CRis AB
Unknown disse…
Belo texto amigo... Eu sou formado em exatas mas desde garoto, apaixonado que sou por futebol e leitura, sempre me interessei por boas crônicas sobre o esporte bretão. Após "descobrir" Armando, confesso que fiquei um pouco crítico c/ os demais cronistas... Armando, como falado, fazia de um simples comentário de jogo, uma sensível poesia... mas ele deve estar feliz, afinal, vai poder ver "ao vivo", as peladas entre Garrincha, Didi, Dener, etc...
E apenas acrescento aos grandes cronistas em extinção, o nosso amigo Torero, que aliás, foi quem me apresentou este seu texto... Abraços.
Valdemagno disse…
Eu cunhei uma frase bem ao estilo dele:

Para homenagear Armando Nogueira, é necessária uma hora de silêncio. Um minuto é pouco!