O amor que tortura

Assisti, na semana passada, ao filme Preciosa, vencedor de dois Oscars. Fiquei impressionado, como há muito tempo não me sentia no cinema. Preciosa é um drama clássico, o tal enredo “baseado em fatos reais”. Engana-se, porém, quem acredita ser uma história comovente, daquelas que exigem lencinhos dos espectadores em várias cenas. Lágrimas, provavelmente, serão derramadas, mas como fruto do desconforto, do peso que o diretor Lee Daniels transfere para o colo do público. Lágrimas que podem vir acompanhadas de um sorriso amarelo.

Preciosa é um filme pesado, que produz faces de constrangimento na saída da sala de cinema. Preciosa é um incêndio que deixa todos chamuscados. Ninguém passa ileso, capaz de comer uma pizza ou tomar um cafezinho e não tocar no assunto. Preciosa faz pensar, a partir da dor, sobre a condição humana e as relações entre as pessoas diante das adversidades. Provoca a necessidade de, assim que o filme terminou, perguntarmos para a pessoa ao lado: - E aí, o que você achou?

Preciosa parece um filme sobre desgraçados, sujeitos ignorados pelo mundo que os cerca, se olharmos somente a superfície desta obra. O olhar mais atento indica uma história de amor, mesmo após a sucessão de golpes que uma pessoa pode receber daquelas em quem confia. Golpes que sangram em nome de sentimentos nobres, que torturam em nome de uma relação de dependência interpessoal, que levam ao nocaute por poder e rancor no núcleo familiar.



Preciosa é o nome do meio de uma garota de 16 anos, negra, obesa e praticamente analfabeta. Ela vive com a mãe, que passa os dias imóvel diante da TV. O dinheiro que mantém a casa vem do seguro social que a adolescente recebe do governo. Preciosa tem uma filha, que sofre de síndrome de Down. A menina, criada pela avó, é chamada de Mongo pela mãe de Preciosa, que não tolera a criança. A menina é fruto da relação incestuosa da adolescente com o pai. Na verdade, uma maneira educada de se referir aos sucessivos estupros.

A família sem estrutura é só um ponto de deslocamento social de Preciosa, que também não se encaixa no sistema escolar. Este modelo a rejeita, a expulsa e a encaminha para um serviço educacional que atende mulheres vistas como problemáticas. Como escapismo, a única saída da adolescente são momentos em que constrói um universo de fantasia, uma vida glamourosa na própria imaginação, mundo onde é amada, acolhida e desejada por todos.

Preciosa parece fadada a um processo de desgraça contínua. O pai, que não aparece na trama, a engravida novamente. A rejeição da mãe e as dificuldades de Preciosa lidar com duas crianças não representam o término do calvário. Outros fatos farão com a adolescente tenha dúvidas em compreender se amor significa um sentimento nobre e fundamental para a vida dela. Todas as experiências indicaram que amor está associado à violência, desprezo e indiferença.

A classe de garotas-problema é o local onde Preciosa começa a ver a vida pulsar. Lá, ela é respeitada e compreendida pela identidade que possui. Na sala de aula, não ocorre somente o desenvolvimento pedagógico, traduzido na leitura e na escrita. Naquela sala de aula apertada, com mulheres tão diferentes, Preciosa se sente – pela primeira vez – acolhida, amada por alguém: a professora.

A adolescente é vista pela professora como um ser humano, na acepção do termo, uma pessoa com necessidades, com valores, como sede de continuar. A professora manifesta o amor próximo do estado puro, aquele sem busca de reconhecimento do outro, em um caminho de doação, sem a cobrança por recompensa. A sala de aula se transforma em um cenário diferente dos demais, onde Preciosa é invisível, sem registro, sem serventia, uma ficha entre as que se amontoam nos armários da assistência social.



Mo´nique, que interpreta o papel da mãe, levou o Oscar de atriz coadjuvante. O trabalho dela é sublime, o retrato de uma pessoa amargurada pelo abandono, pela rejeição do marido, que a troca pela filha, mais a vergonha social, que a mantém acorrentada – simbolicamente – a uma poltrona, com olhos vidrados na TV. E praguejando contra a própria desgraça. Uma vítima!

A mãe é vítima e carrasca, simultaneamente. Preciosa é o alvo para o exercício da vingança, a personificação da culpa que pode ser medida, com facilidade, dentro de casa. O marido, na visão da mãe, não é o agressor, mas aquele que foi roubado pela filha. E mãe, alguém sem oportunidade de um relacionamento estável, que a aproximaria do sonho americano.

O filme apresenta também competente elenco de apoio. Dois personagens secundários foram feitos por músicos famosos, quase irreconhecíveis em seus papéis. Mariah Carey interpreta uma assistente social que não dá conta da história de Preciosa, uma vida turbulenta demais. E Lenny Kravitz faz o enfermeiro que auxilia a adolescente no trabalho de parto do segundo filho. O personagem é sensível, a exceção disposta a ouvi-la e, em nenhum momento, preocupado em rotular ou estabelecer juízo de valor a respeito dela.



O filme, dirigido por Lee Daniels, faturou também o Oscar de melhor roteiro adaptado. No total, seis indicações. A história é baseada em livro de mesmo nome. Daniels é o segundo diretor negro indicado à estatueta na história do cinema.

Mais do que um drama baseado em fatos reais, Preciosa é uma história que acontece diariamente, ao nosso lado. A trama está nas delegacias de polícia, nos corredores dos hospitais públicos, nas salas de espera dos serviços de assistência social.



Preciosa é alguém que passa por nós numa avenida qualquer, sobre quem nada sabemos. Ela é uma personagem trancada atrás das portas das instituições, seja a família, seja a escola, seja o sistema público impessoal,.que, talvez por teimosia ou ignorância social, não conhecemos.

A história, como os dramas comuns no cinema, não nos traz a redenção. Fornece a dúvida. Preciosa tem chance de dar certo? O filme explora nossa indignação e nos constrange diante de nossos próprios sentimentos mesquinhos. O jogo de sentimentos nos coloca a pergunta: qual é o tamanho do nosso problema diante de alguém como Preciosa?

(Nos cinemas)

Comentários

Mayara Jacques disse…
Teacher, primeira vez que passo por aqui, adorei!!!
Estarei acompanhando, abraços Mayara
Anônimo disse…
assisti esse filme umas quatro vezes, para lembrar que não posso me tornar incapaz ante o sofrimento alheio.